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Não há novidade em dizer que a política é constituída por tensões morais e conflitos de interesse. 

Quando, em 2018, Jair Bolsonaro se candidatou à presidência da República, sua campanha foi constituída por inúmeras polêmicas. Exemplo marcante foi a midiatização de um suposto “Kit Gay”, iniciada nas redes sociais e amplificada numa participação ao vivo no Jornal Nacional, na qual Bolsonaro também afirmou que se um policial mata várias pessoas durante uma operação ele “tem que ser condecorado, e não processado”. 

Em contrapartida, circulavam memes de sua imagem vestindo uma camisa de força, tentativa de ridicularizá-lo, associando-o à loucura. Desde então, debates englobando a relação entre transtornos mentais e ocupação de cargos eletivos são acesos entre diferentes atores sociais e a opinião pública. 

Aquele branco, do jaleco, da camisa de força, que apela à pureza, sufocando a expressão de um corpo… O quanto será que ele não sublima um desejo de repressão dos nossos instintos mais eloquentes de sadismo? A própria repressão já não seria uma atitude sádica? Nessa tentativa desesperada de neutralização de alguém considerado ultra perigoso, me pergunto: pode um psicodiagnóstico retirar direitos políticos?

Em março de 2020,  a jornalista Juliana Braga conduziu uma live no canal do YouTube “My News” para comentar e analisar politicamente um parecer da consultoria legislativa da Câmara que discutia a possibilidade de considerar Jair Bolsonaro “mentalmente incapaz”. 

Escrito em outubro de 2019, o parecer respondia a uma solicitação feita por Marcelo Calero, deputado eleito pelo CIDADANIA do Rio de Janeiro (RJ), trazendo um histórico dos presidentes ou mandatários máximos do Brasil que foram perdendo a lucidez durante o exercício de seus cargos.

O primeiro caso citado foi o de Dona Maria I, apelidada de “Dona Maria Louca”, que não foi deposta de seu cargo. Porém, solicitaram ao seu filho, Dom João VI, que assinasse os documentos em seu nome. O segundo caso foi o de Delfim Moreira, acometido por arteriosclerose precoce, doença que o deixava “desligado de suas tarefas”. Quem então passou a tomar as decisões por ele foi o Ministro Afrânio de Melo Franco. 

Braga disse não haver fundamentação na Constituição para afastamento em caso de deficiência ou incapacidade mental e apontou que depois de uma modificação no Estatuto da Pessoa com Deficiência, que trata da “incapacidade civil”’, foi retirado do enquadramento qualquer pessoa que tenha enfermidades ou deficiências mentais. Dessa forma, apenas os menores de 16 anos são considerados incapazes civis absolutos. Sugeriu-se então a criação de uma legislação específica para tratar desse assunto. 

Deliberar meticulosamente sobre quem pode ou não ser considerado plenamente capaz de exercer os seus direitos e cumprir conscientemente os seus deveres, assim, a priori, cabe a quem? Por quais mãos está sendo guiada a caneta? E o que ela escreve? Como a “incapacidade” é narrada pela ótica do direitos e do processo civil?

Conversei com Néroli Fernandes Pereira (OAB/PR n° 97.376), advogada que atua com Direito Empresarial e Processos Civis, para entender sua percepção sobre o caso. Segundo ela, “a ‘inaptidão mental’ foi retirada do Código Civil como ‘incapacidade total’. Hoje, o Código Civil a reconhece como uma das espécies de ‘incapacidade relativa’, ou seja, ‘quem não puder exprimir sua vontade’, conforme o art. 4º, inciso III”. 

Ela ressaltou que “os requisitos para ser presidente do Brasil são: ser maior de 35 anos, estar filiado a partido político, ser brasileiro nato, ter domicílio eleitoral no Brasil, ser eleitor e ter pleno exercício dos direitos políticos, conforme prevê o art. 14 da Constituição Federal”. E acrescentou: “o art. 15 da Constituição, que dispõe sobre os direitos políticos descritos no art. 14, determina que estes só serão perdidos ou suspensos em situações e hipóteses específicas, sendo que o inciso II dispõe sobre ‘incapacidade absoluta’, o que não é o caso. Portanto, não há previsão legal para afastamento por incapacidade mental, já que esta é considerada uma ‘incapacidade relativa’ pela Constituição Federal”. 

Para se interditar alguém é preciso, portanto, recorrer ao Código de Processo Civil. Néroli esclareceu que a interdição “é cabível em casos que o interditando possui incapacidade mental permanente ou temporária, sendo solicitada pela ordem expressa no art. 747 do Código de Processo Civil: I – pelo cônjuge ou companheiro; II – pelos parentes ou tutores; III – pelo representante da entidade em que se encontra abrigado o interditando; IV – pelo Ministério Público”. A solicitação deve ser acompanhada por laudo médico que comprove suas alegações e, em caso de impossibilidade de apresentar laudo, informar as razões. 

Se tanto a estruturação quanto a aplicabilidade das normas sociais não compete a um só corpo de especialistas, mas a uma articulação entre diferentes saberes, ainda assim, é preciso exercitar a ética, filosofar sobre os valores morais nos quais estão calcadas tais normas. É dar-se o benefício da dúvida. O que se deve fazer com um corpo considerado perigoso? Responsabilizar ou interditar?

Em março de 2021, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) entrou com um pedido de interdição a Jair Bolsonaro como chefe do Executivo Federal. A ação de Representação movida na Procuradoria-Geral da República (PGR) se baseou em atitudes do próprio presidente durante a pandemia que agravaram “ainda mais a crise sanitária do Covid-19, contribuindo substancialmente para a elevação da contaminação no país e do número de mortos”, segundo matéria publicada no site do partido. 

Dentre as atitudes citadas, estão: a diminuição da importância da vacina e de uma campanha de imunização; o descumprimento de medidas sanitárias, como o uso obrigatório de máscaras, distanciamento e isolamento social; a propagação de informações equivocadas e orientações técnicas sem a devida validação científica, como a compra em massa de hidroxicloroquina e sua generalizada prescrição; bem como atos de obstrução às respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia. 

A interdição se justifica na tese de que Bolsonaro seria mentalmente incapaz e/ou insano para o desempenho de sua função, uma vez que “age na contramão dos atos que uma pessoa em plena saúde mental agiria, especificamente porque tem a finalidade deliberada de causar danos à população brasileira, conduzindo o país ao abismo”, através de “condutas negacionistas e obscurantistas em detrimento da ciência” (p. 08). Em suma, o documento entende que trata-se de um caso de ativismo político e propaganda contra a saúde pública e as autoridades sanitárias. 

Mais que uma tese constituída com base em evidências, a narrativa de interdição parece corresponder a uma necessidade política de profilaxia para a saúde pública, que precisa ser bem gerida. O que infelizmente não aconteceu durante o seu governo. Seria, então, o psicodiagnóstico um caminho mais curto para um impeachment?

Na semana seguinte à ação do PDT, a Associação de Advogados e Advogadas pela Democracia, Justiça e Cidadania (ADJC) também entrou com uma Representação, desta vez solicitando a constituição de uma Junta Médica com a finalidade de interdição. O documento recorreu a declarações de Miguel Reale Jr., jurista e autor dos pedidos de impeachment dos ex-presidentes Fernando Collor e Dilma Rousseff, feitas sobre a participação de Bolsonaro em uma manifestação contra o Congresso Nacional e contra o Supremo Tribunal Federal (STF) em plena pandemia:

“O Ministério Público pode requerer um exame de sanidade mental para o exercício da profissão. Bolsonaro também está sujeito a medidas administrativas e eventualmente criminais. Assumir o risco de expor pessoas a contágio é crime”. 

Dias depois, Joice Hasselmann, deputada federal eleita pelo Partido Social Liberal (PSL) de São Paulo, protocolou uma Proposta de Emenda Constitucional que ficou conhecida como “PEC da Sanidade”, estipulando que o vice-presidente da República, junto com 1/4 dos ministros, possa notificar os presidentes da Câmara e do Senado de que o chefe do Executivo “está mentalmente incapacitado para o exercício do cargo”. Inspirada na discussão sobre a aplicação da 25ª Emenda para afastar Donald Trump da presidência dos Estados Unidos após a invasão do Capitólio em janeiro, a proposta precisaria que no mínimo 171 parlamentares (⅔ da Casa) assinassem o texto, em até 30 dias, para tramitar no Congresso. 

A narrativa de interdição, no entanto, também conjura os seus perigos. Advogados, juristas, jornalistas e, por fim, políticos, se apropriam de um saber ao mesmo tempo em que desrespeitam os seus ritos. Alguma dessas pessoas seguiu adequadamente a metodologia utilizada para concluir aquilo que supõem? E, se supõem, encaminharam o caso para avaliação psiquiátrica e psicológica? Enfim, a quem cabe alegar “transtorno mental”?

Ainda que a movimentação esteja partindo majoritariamente de pessoas que ou atuam na área do Direito ou ocupam cargos eletivos, alguns profissionais da Psicologia contribuíram com a discussão na imprensa. 

Um exemplo é o texto “Um psicopata na presidência?”, escrito por Guilherme Bertassoni da Silva (CRP 08/10536), psicólogo e perito criminal na Polícia Científica do Paraná, que reflete sobre os critérios adotados para verificar hipótese diagnóstica de Transtorno de Personalidade Antissocial, quadro descrito pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM V, elaborado pela Associação Psiquiátrica Americana (APA).  

O item A versa sobre “um padrão difuso de desconsideração e violação aos direitos das outras pessoas, que ocorre desde a adolescência, como indicado por três (ou mais) dos seguintes critérios:

  1. 1. Fracasso em ajustar-se às normas sociais relativas a comportamentos legais, conforme indicado pela repetição de atos que constituem motivos de detenção.
  2. 2. Tendência à falsidade, conforme indicado por mentiras repetidas, uso de nomes falsos ou de trapaça para ganho ou prazer pessoal.
  3. 3. Impulsividade ou fracasso em fazer planos para o futuro.
  4. 4. Irritabilidade e agressividade, conforme indicado por repetidas lutas corporais ou agressões físicas.
  5. 5. Descaso pela segurança de si ou de outros.
  6. 6. Irresponsabilidade reiterada, conforme indicado por falha repetida em manter uma conduta consistente no trabalho ou honrar obrigações financeiras.
  7. 7. Ausência de remorso, conforme indicado pela indiferença ou racionalização em relação a ter ferido, maltratado ou roubado outras pessoas. 

Já o item B estabelece que o indivíduo deve ter, no mínimo, 18 anos de idade. O item C questiona se há evidências de transtorno da conduta com surgimento anterior aos 15 anos de idade. E o item D estabelece que a ocorrência de comportamento antissocial não se dá exclusivamente durante o curso de esquizofrenia ou transtorno bipolar. 

Ao longo do texto, Silva resgata notícias e declarações públicas de Bolsonaro para ilustrar, de maneira didática, que todos os sete critérios do item A são contemplados por suas atitudes.  Além disso, Bolsonaro possui idade superior a 18 anos e não há indícios de que suas declarações públicas insensíveis e demais atitudes violentas tenham ocorrido durante o curso de uma esquizofrenia ou durante a fase maníaca de um transtorno bipolar. O que demandaria uma investigação mais aprofundada, sim, seria um histórico sobre o seu desenvolvimento social e primeiros anos de vida, a fim de averiguar a ocorrência ou não de transtornos de conduta registrados antes de completar seus 15 anos de vida. 

Publicado em maio de 2020 no jornal Pragmatismo Político, o texto “Um psicopata na presidência?” também menciona o Psychopathy Checklist-Revised (PCL-R), teste criado pelo psicólogo canadense Robert Hare.  

Nas palavras de Silva, “estamos lidando com um psicopata na presidência, que conduz o país na mesma direção de seu caos mental. Toda esta narrativa de desprezo pela vida e dignidade alheia só pode cessar com seu imediato afastamento das funções presidenciais, conforme art. 86 da Constituição Federal”. 

Em que pese toda a gama de percepções sobre a postura do atual presidente, é necessário, contudo, concordar com a argumentação de Juliana Braga na live: seria incongruente aplicar a acusação de “crime de responsabilidade” a alguém considerado “incapaz”. 

Me parece que o problema, sobretudo, corresponde a um acordo velado, assinado sob os véus da sutileza do cotidiano, vivida nos corredores edificados para a classe política e sussurrada para além das lentes e dos holofotes. A incapacidade de assumir responsabilidades é uma prática cotidiana e infelizmente banalizada. Criminalizar Jair Bolsonaro por agir de maneira irresponsável é abrir precedentes para a criminalização de muitos outros que gozam deste caos cênico incapaz de destituí-lo da presidência da República. 

  

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