Ouça esta publicação

As armas têm sido a solução para a falta de segurança pública oferecida pelo governo. Com o apoio do presidente e de uma bancada formada por 275 parlamentares, o número de armas ativas registradas pela Polícia Federal vem crescendo. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que houve um aumento de 97,1% na aquisição de novas armas por civis. Além disso, o anuário mostrou que, entre 2017 e 2020, o Sistema Nacional de Armas (SINARM) calculou um aumento de mais de 100% no número de armas no país.

Tais ações caminham junto com a emblemática “PL da bala solta”. Na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 3723/19 foi aprovado com 283 votos favoráveis e 140 contrários e, desde então, tramita no Senado. Durante esse tempo, foram apresentadas 100 emendas, e o projeto segue em análise da CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania). Ao todo, o governo já publicou 15 decretos presidenciais, 19 portarias, dois projetos de lei e duas resoluções para a flexibilização das regras para posse de armas.

Senador Marcos do Val (Podemos-ES)
Senador Marcos do Val (Podemos-ES) é o relator da PL 3723/19 no senado. / Foto: Edilson Rodrigues – Agência Senado

Como candidato a presidência, em 2018, Jair Bolsonaro incitou a população a se armar. Depois, eleito, seu discurso não mudou. Em agosto de 2021, o presidente afirmou em frente ao Palácio da Alvorada que defende o uso de fuzil pela população. “Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado”, disse ele.

É dever do Estado garantir segurança, mas, ao invés de oferecer um serviço de qualidade, o governo apoia ações pró-armamentistas. Para Marcos Rolim, professor de mestrado em direitos humanos da UniRitter e membro fundador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, “o medo amplia o apelo às armas, mas é um péssimo conselheiro. Civis armados e sem preparo para o uso de armas de fogo estarão muito mais expostos a riscos, especialmente se tentarem reagir quando abordados por criminosos”, relata.

O Brasil é um país preconceituoso, mesmo que de forma velada. O Instituto Sou da Paz realizou um estudo chamado “Violência armada e racismo: o papel da arma de fogo na desigualdade social”, que, em 2019, evidenciou que, dos 30 mil assassinatos por armas de fogo, 78% foram contra pessoas negras. E esses números podem piorar ainda mais com a flexibilização proposta pela PL da bala solta.

Em análise desse cenário, Marcos César Alvarez, professor de sociologia e coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, diz que se trata de “combater o fogo com fogo e jogar mais gasolina nesse tipo de situação, que já é bem, digamos assim, preocupante”.

A Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, dispõe sobre a aquisição, o cadastro, o registro, o porte e a comercialização de armas e munições no país. Atualmente, um Colecionador, Atirador e Caçador (CAC) pode ter 10 armas, sendo cinco de uso restrito. Acessórios são proibidos. As armas autorizadas para compra são quatro vezes menos potentes e as munições têm um código de barras que garante saber quem fabricou e comprou o lote.

“A marcação de munições e outras medidas de controle sobre armas de fogo constituem medidas que constrangem a ação das milícias e de grupos ligados ao tráfico de armas e drogas. Parece incrível, mas chegamos ao ponto de termos lideranças políticas no Brasil que parecem agir exatamente para beneficiar esses segmentos”, afirma Marcos Rolim.

Post da rede social do Bolsonaro
Post da rede social do Presidente onde ele apoia a posse de armas.

AS CONSEQUÊNCIAS DE UMA SOCIEDADE ARMADA

Graças ao Presidente Jair Bolsonaro e a “bancada da bala” (como ficou conhecido o grupo de parlamentares que defende o armamento), o projeto de lei 3723 vem ganhando força. Algumas mudanças preocupam os especialistas em segurança pública. Dentre elas, o fato de que atiradores passarão a ter direito a 16 armas, sendo seis de uso restrito e sem limite máximo de compra; além disso, acessórios como lasers e visores noturnos poderão ser comprados sem nenhum tipo de controle; e a marcação de munições deixará de ser obrigatória.

Para Rolim, “por decreto e em desacordo com a Lei, Bolsonaro estimula a formação de arsenais privados, assegurando um porte de fato para milhares de pessoas. Regras mais flexíveis para compra permitem condições também mais flexíveis para a ação de aproveitadores que passam a desviar armas para o crime. Os bandidos comemoram”, afirma.

Segundo os dados obtidos com a Polícia Federal, o número de pessoas físicas que estão solicitando o registro de armas vem aumentando. Em 2018 foram 37.029 pedidos, em 2019, 54.413. Entre esses dois anos, o número já foi 46% maior. Já em 2020, o número de pedidos chegou a 122.378; 2021 somou 153.906 e até o mês de março de 2022 esse número já chegava a 24.848 pedidos de pessoas físicas. O número de pedidos para posse e porte de armas também cresceu.

Número de pedidos para porte e posse de armas

O armamento de civis pode significar um aumento de homicídios em brigas banais, como as de trânsito e entre vizinhos; casos de violência doméstica também devem entrar para a conta com muita preocupação. Além disso, para Marcos Rolim, mais armas acarretam em mais tentativas de suicídio exitosas e mais mortes e ferimentos acidentais; segundo ele, esse fato “assinala um risco jamais presenciado na história brasileira”.

O GOVERNO BOLSONARO E AS ARMAS

Além das polêmicas mudanças na PL 3723/19, o governo Bolsonaro também enfrentou outras questões relacionadas à flexibilização e incentivo do porte de armas. A principal crítica veio após a matéria divulgada no portal Agência Pública, que mostra André Porciuncula, ex-secretário de cultura, prometendo a grupos armamentistas R$ 1,2 bilhão de recursos da Lei Rouanet para a criação de conteúdos audiovisuais pró-armas.

Durante a Convenção Nacional Pró-Armas ele disse: “Estamos lançando agora, de linha audiovisual, que vocês podem usar para fazer documentários, filmes, webséries, podcasts, para quê? Para trazer a pauta do armamento dentro de um discurso de imaginário. Trazer filmes sobre o armamento, da importância do armamento para a civilização, a importância do armamento para garantir a liberdade humana”.

Ex-secretário em evento pró armas
Ex-secretário, André Porciuncula, em evento pró armas / Reprodução: YouTube

O financiamento, via Lei Rouanet, seria para a produção de um livro que conta a história das armas no Brasil. O projeto foi apoiado pela Taurus, fabricante de armas de fogo que fechou 2021 com um lucro líquido de R$ 635,1 milhões, um saldo positivo em comparação ao ano anterior. O investimento da empresa para a fabricação do livro será de R$ 336 mil e, em troca, receberá benefícios fiscais previstos na lei. Para o professor de sociologia da USP, “Parece ser justamente você patrocinar, via dinheiro público, uma plataforma de valores”.

Ele acredita que livros e pesquisas que mostrem a história desse equipamento são válidos, desde que verdadeiros e com embasamento. “Há uma infinidade de historiadores que poderiam estudar o tema. Isso é um campo de investigação, e com as contradições mostrando justamente isso. Não é uma história de jardinagem, é uma história de mortes, às vezes de massacres e talvez de defesa de algum valor”, relata.

Outra polêmica envolvendo armas e integrantes do governo aconteceu no dia 25 de abril deste ano com o ex-ministro da Educação, Milton Ribeiro. Ele estava no balcão da Latam do aeroporto Juscelino Kubitschek, em Brasília, e carregava uma Glock 9 mm quando, ao manuseá-la dentro de uma pasta, acabou atirando e ferindo uma atendente com estilhaços e sem gravidade.

“Um ex-ministro portando uma arma que não sabe manusear (porque só pode ser isso) e de repente, isso quase matou uma pessoa. Se ela estivesse a 30 centímetros, era uma morte. Ou seja, isso é tão sério que traz outras formas graves de assassinatos”, afirma o sociólogo.

O ANTIGO BRASIL ARMADO E O ATUAL CENÁRIO DE DESESPERO

Em um passado, não muito distante, era possível comprar armas em shoppings, munições em lojas de ferragens e qualquer pessoa maior de 21 anos poderia andar armada em qualquer lugar. Em alguns estados, os locais públicos ofereciam um espaço adequado para guardar pistolas e revólveres. Esse era o Brasil antes da campanha do desarmamento.

Propaganda de armas
Propagandas de venda de armas anunciadas em jornais, antes da campanha do desarmamento.

A ideia de que a arma traz segurança permeia o imaginário dos brasileiros há muitos anos, mas nem sempre os dois fatores estão relacionados. Segundo os dados do Ministério da Saúde e do Ipea, entre 1980 e 2003, as taxas de homicídio cresciam 8% ao ano, passando de 14 assassinatos por cem mil habitantes, para 36,1.

Foi com esses índices alarmantes que, em 2003, o governo Lula sancionou o Estatuto do Desarmamento, restringindo o acesso às armas e salvando 160 mil vidas. Durante a campanha, o governo incentivou a população a entregar suas armas e, entre 2004 e 2005, mais de 440 mil delas foram recolhidas.

Daniel Ricardo de Castro Cerqueira e João Manuel Pinho de Mello, ambos pesquisadores da área, produziram em 2013 um estudo evidenciando que se o Estatuto do Desarmamento não existisse, a taxa de homicídio teria sido 12% maior no período entre 2004 e 2007. Segundo o estudo “Causa e consequências do crime no Brasil“, a cada 1% a mais de armas de fogo em circulação, existe 2% de aumento nas taxas de homicídio.

Após 19 anos da criação do estatuto e da devolução das armas, a ideia de que “bandido bom é bandido morto” ainda permeia o imaginário da população brasileira. Uma boa parte desse pensamento existe porque o Brasil não avançou em políticas públicas eficientes que realmente combatessem a violência. Para Marcos César Alvarez, a criação do estatuto “foi um momento até simbólico. Só que, sem dúvida, o problema é esse. Ou seja, em vários momentos era preciso ir além. Isso é simbólico, é importante, mas você precisa construir políticas públicas melhores”, afirma ele.

Atualmente, o Brasil vive um momento conturbado: são diversas as polêmicas no governo; as consequência da pandemia (que ainda não acabou) exigem controle; e os índices de desemprego, inflação e falta de segurança tornam a percepção de futuro desanimadora. É um cenário favorável para a “cidadania decepcionada”, segundo Alvarez.

“Já que o Estado não nos dá segurança, vamos nos armar de novo. Entendo o solo e as raízes sociais disso, mas é um beco sem saída. Porque a saída continua sendo construir um Estado, instituições e comportamentos capazes de pacificar a sociedade” relata.

REDES SOCIAIS: O MARKETPLACE ILEGAL DE ARMAS

A venda de armas é feita de forma escancarada na internet, principalmente em grupos pró-armas do Facebook. A produção do journal48 acessou alguns desses grupos (que são abertos) e flagrou algumas dessas vendas ilegais. Também encontramos contatos para facilitação da documentação.

Um post de 11 de fevereiro no grupo “Armas de fogos”, no Facebook, por exemplo, diz “Porte de arma facilitado!! Quem tiver interesse deixa o contato” e exibe uma foto de diversos documentos falsos que autorizam a posse dos equipamentos.

Facilitação para o porte
Postagem de facilitação para o porte

Segundo Mateus Catalani Pirani, advogado especialista em direito digital, relata que o comércio nas redes sociais e aplicativos de vendas se tornou um vasto meio de comercialização ilegal de armas e munições.

“Nas camadas superficiais da internet é perfeitamente possível, em concepção, realizar a vigilância dessas plataformas tradicionais de vendas. Com um pouco de colaboração das plataformas e ativismo dos organismos públicos poderia se ter uma maior vigilância punitiva a tal prática”, afirma Mateus.

Venda de armas no Facebook
Postagem de vendas de armas
Venda de armas no Facebook
Comentários da postagem.

Tanto as munições quanto as armas podem ser vendidas na internet, porém para que esse processo seja legal, o vendedor precisa ser credenciado ao Exército e a venda só pode ser concluída caso o comprador tenha os documentos de porte e posse de armas. O especialista alerta que essa normativa é dos anos 90, quando não era possível prever o cenário da venda pelas redes sociais.

“Em uma primeira análise, sim, é possível comercializar armas de fogo pela internet, de modo que não há impedimento na lei em divulgar imagens de armas de fogo para a venda, mas, para efetivar a negociação, só se o comprador atender a todos os requisitos necessários para posse da arma” explica Mateus.

Política de vendas do Facebook
Política de vendas de armas de fogo no Facebook.

O acesso as armas de fogo precisa ter o controle e avaliação do Exército, já que é um objeto que pode tirar a vida de uma pessoa. “As armas de fogo são elementos, cuja própria natureza precisa ter altíssima vigilância. Então, o fato de haver comércio sem a apuração da legalidade por parte do exército, faz com que armas de mal estado de conservação sejam postas às mãos das pessoas, além daquelas de procedência duvidosa ou produto de crimes”, relata o advogado.

De acordo com a normativa do Sistema Nacional de Armas, a pena para quem vende ou compra armas de forma ilegal pode ser de 1 a 4 anos de prisão e multa.

De acordo com Marcos Rolim, “todas as armas de fogo hoje nas mãos de criminosos foram, um dia, vendidas legalmente para um assim chamado ‘cidadão de bem’. Depois, por roubos, furtos ou corrupção, elas migraram para a ilegalidade”. Ele também afirma que quanto mais armas em circulação, menor o preço do mercado ilegal, o que facilita para os criminosos.

VIOLÊNCIA NO BRASIL

O Brasil é o país onde a população mais teme a violência no mundo, sendo que cerca de 83% das pessoas se preocupam em ser vítimas de crimes violentos. Os dados são de 2021 e obtidos pela Global Peace Index. Para Marcos Cesar Alvarez, “em todos esses aspectos, a gente percebe que o controle da violência em qualquer sociedade é algo importante a ser buscado. Em sociedades como a brasileira, ainda mais”.

Os dados apontam que existe urgência para o desenvolvimento de políticas públicas eficientes, ainda mais quando se vive às margens da sociedade. Apesar do medo estar em todo o Brasil, as 17,1 milhões de pessoas que moram nas comunidades brasileiras periféricas estão ainda mais expostas a essa violência.

“Eu posso ser alguém de classe média em um condomínio e tenho muito medo de sair na rua, até com carro blindado. Mas, sem dúvida, minha vulnerabilidade é muito menor do que alguém pobre na periferia que tem que circular de ônibus, de trem. O que a gente também discute nas ciências sociais é justamente isso. A ideia de pânicos morais que você acaba por motivos políticos, de luta social, criando medos que são excessivos”, exemplifica Alvarez.

A campanha do desarmamento recolheu um número expressivo de armas, mas por falta de interesse político e ações efetivas, a consequência foi o aumento no número da violência. Com o aumento desses números surge a imposição (por parte de agentes políticos e grupos de interesse) no imaginário coletivo brasileiro de que a população armada seria a solução. “Acho, sem dúvida, que existe todo um contexto de violência que explica por que as pessoas buscam essas respostas rápidas”, finaliza o professor da USP.

5 2 votes
Article Rating
Subscribe
Notify of
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments