Ouça esta publicação

Há muito, um assunto me inquieta positivamente e me assusta ao mesmo tempo. E o que tenho feito com ele? O evitado, é claro. Mas o momento que vivemos não me permite fugir de tal responsabilidade por mais muito tempo. Ela não bate à porta, a esmurra. Se escancara à mesa do jantar em um encontro de família; se infiltra pelos stories de desconhecidos nas minhas redes sociais; se mostra em conversas superficiais enquanto passo minhas compras no caixa do supermercado.  

Creio que este texto terá um tom um pouco mais pessoal do que a encomenda. E, pasmem, vamos conversar de forma aberta sobre nada menos do que o negacionismo científico. 

Muitos parecem ser os fatores responsáveis por instaurar e perpetuar o caos da desinformação, com atenção especial aos grupos que deliberadamente a produzem e disseminam, a governos neoliberais institucionalizando discursos anti científicos, e às redes sociais, que deram às fake news alcance e velocidade antes inimagináveis.  

Mas, o que mais leva parentes, vizinhos, amigos e desconhecidos com quem esbarramos a duvidar de informações que possuem embasamento científico tão sólido? Continuariam os fanatismos ideológicos e projetos necropolíticos tão potentes a ponto de não apenas conquistar, mas também manter tantos adeptos ao negacionismo científico caso nos dispuséssemos a falar  mais abertamente sobre ciência? 

Sinceramente, não tenho a resposta definitiva para essa pergunta – pois seria negligente da minha parte relativizar a dimensão das estruturas que têm se construído em torno da desinformação nos anos recentes. Ademais, não podemos, jamais, ignorar o fato de que, no Brasil, falar de ciência de forma qualificada, aprofundada e crítica – que antes já tinha seus entraves – torna-se exponencialmente mais desafiador diante dos ataques (materiais e simbólicos) destinados às universidades públicas pelo governo federal nos últimos anos. Lembrando que são elas as maiores produtoras de ciência no país. 

Feitas estas importantíssimas ressalvas, ouso creditar parte da onda negacionista com a qual convivemos à falta de compreensão, por parte de muitas pessoas, do que é e do que não é a ciência, e de como ela funciona. Esbarrei com essa situação muitas vezes ao longo destes dois anos de pandemia. Vi e ouvi pessoas do meu convívio ou que passaram por mim levantarem uma série de “fatos” e argumentos falaciosos que os justificavam, acreditando neles, às vezes com fervor.  

Talvez haja, aí, uma dose de desespero? Creio que sim… Afinal, não foram poucos os dados científicos que se mostraram verdades inconvenientes durante a crise sanitária sem precedentes que enfrentamos. Talvez seu avô tivesse o desespero como motivo para fantasiar sobre a cura ou prevenção da covid por um tratamento precoce milagroso em um momento no qual o presidente do Brasil se negava a comprar vacinas para seus cidadãos.

Mas qual seria a posição desse avô, daquela prima, dos vizinhos, se todos compreendessem um pouco melhor o método científico, e os mecanismos institucionais de produção e verificação do conhecimento produzido pela ciência? Por quanto tempo a falácia venceria sobre o que é fato?   

Se, por um lado, essa soma de desespero com falta de uma alfabetização científica de qualidade parece ser moeda de troca para o negacionismo que enriquece os bolsos de alguns, do “lado de cá” (dos cientistas e defensores da ciência) creio que também estamos vivenciando uma outra faceta desse desespero.

Percebo-nos tentando defender a ciência com unhas e dentes de forma reativa e defensiva, contra-argumentando mentiras com fatos, ao invés de dialogarmos sobre como estes fatos foram obtidos. Eu, pessoalmente, vim cometendo esse erro uma boa porção de vezes ao longo dos últimos dois anos. E, adivinha, não está funcionando tão bem assim. 

Como vou combater a falácia de apelo à autoridade, que ganhou tanto corpo com médicos propagadores de inverdades sobre a pandemia, se uso como argumento o trabalho de outra autoridade?

A divulgação científica séria é muito diferente do desserviço prestado por “autoridades” negacionistas: ela comunica resultados de diversos artigos, e não de alguns poucos escolhidos a dedo; se preocupa em mencionar e beber em fontes de qualidade; e dá prioridade aos resultados de pesquisas robustas – como revisões sistemáticas e meta-análises, no caso dos estudos em saúde.

Mas, será que isso é suficiente para convencer minha vizinha a tomar vacina? Será ela capaz de identificar tais diferenças se não conhece os pilares sobre os quais a construção do conhecimento científico se edifica?  

Eu sei, o tempo urge! Diante dos múltiplos eventos que já anunciam os efeitos das mudanças climáticas e ameaçam a sobrevivência não apenas das próximas, mas da nossa geração, às vezes parece que a saída é correr e gritar aos quatros ventos que a Terra é redonda e que o aquecimento global existe, mesmo que não tenhamos tempo para explicar os porquês, e menos ainda como chegamos a estes fatos. 

Ao mesmo tempo, nós, produtores e produtoras de ciência, parecemos estar agora com medo de admitir publicamente algumas reflexões críticas que há muito tecemos sobre o próprio fazer científico, como os limites do método cartesiano, que ainda embasa grande parte dos estudos das ciências naturais. Mas esse tipo de conversa, atualmente, a gente deixa “em off”, ou para os debates mais ousados em nossas disciplinas de pós-graduação. 

Me parece que nossa postura deriva dessa mistura entre senso de urgência e medo, adicionada a uma boa dose de exaustão. Estamos diante de um tsunami de desinformação, que já não sabemos se algum dia conseguiremos conter.  

Contudo, me pergunto até que ponto esta atitude é potente em defender a ciência, já que o discurso negacionista tem se apropriado (ainda que falaciosamente) de mecanismos da própria ciência para negá-la. 

Como iremos desmascarar um artigo científico fraudulento se não formos capazes de admitir que a ciência não é neutra? Que cientistas são seres humanos, que seu trabalho é passível de erro e está sujeito também à ética de pesquisadores, instituições de pesquisa, e, menos conscientemente, ao contexto sociocultural que circunda sua produção? Na construção da capacidade crítica, mora a compreensão de que nem toda publicação científica é de qualidade. 

Será que, se problematizarmos tais questões abertamente, tememos que o discurso negacionista se aproprie, também, das fragilidades e dos limites do conhecimento científico para produzir e disseminar mais inverdades?  

Brené Brown sempre me lembra do valor da vulnerabilidade. Segundo ela, quanto mais vulneráveis nos sentimos, mais medo temos, e uma das maneiras de anestesiar a vulnerabilidade é tornando certo tudo que é incerto. Por outro lado, ela nos conta: a vulnerabilidade é a chave para o desenvolvimento de conexões significativas. Quem sabe, se nos dispusermos a conversas mais vulneráveis sobre ciência, possamos mostrar o porquê de, por exemplo, tantas informações científicas novas terem surgido ao longo da pandemia e deixado algumas pessoas confusas sobre “em que acreditar”.  

Um diálogo mais franco permite construir a noção de que ciência é um conhecimento eternamente em construção, pois se baseia em perguntas ao invés de respostas. Então, informações que temos hoje podem ser complementadas ou até contrapostas pelas que teremos amanhã, ainda mais num momento em que tantos cientistas estão dedicados a estudar massivamente um mesmo problema. 

Talvez seja o momento de exercitarmos a coragem para dialogar e debater ciência com mais vulnerabilidade e humildade. Vulnerabilidade, para aceitar que nossa capacidade de conhecer o mundo através da ciência tem suas limitações, e que não encerra todas as questões da humanidade. Humildade, para reconhecermos que para questionar e relativizar a pertinência da ciência também existem limites.

A tecnologia, como bem lembra o professor Gilson Volpato, enquanto aplicação direta do conhecimento científico, está aí e pode nos lembrar com frequência de que há na Ciência algo de muito lúcido sendo construído, sem o qual não poderíamos sequer estar lendo este texto. 

Estabelecer diálogos francos sobre Ciência num momento em que o governo do país em que vivemos vai institucionalmente na contra-corrente deste movimento é um desafio e tanto! Apesar disso, não vejo a desistência como opção. E você? 

5 1 vote
Article Rating
Subscribe
Notify of
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments