Ouça esta publicação

Já é sabido que a sociedade em que vivemos está marcada por desigualdades, opressões e fobias de todos os tipos. Há quem diga que está tudo certo, que as coisas “sempre foram assim”, porém quando nos empenhamos em compreender a história das relações sociais, percebemos que todo “normal” foi um dia criado por pessoas, motivadas por seus interesses. O “normal” é um produto social, e seu oposto também. 

Quando falamos em machismo estrutural, estamos falando de um conjunto de “normais” que, ao longo da história das sociedades patriarcais, foram disseminados e reproduzidos. É normal a mulher “ganhar” o sobrenome do marido quando se casa, é normal andarmos pelas ruas ouvindo insultos de cunho sexual, é normal ser a principal e quiçá única cuidadora dos filhos, é normal o pai não ter licença paternidade como a da mãe, e poucos estranham a ínfima participação das mulheres em instâncias decisórias, tanto do governo como de empresas.  

Esses “normais”, e tantos outros, são característicos de uma sociedade estruturada pelo machismo, que o reproduz em seu cotidiano. Numa perspectiva menos pessimista, destacamos o empenho de pessoas e movimentos sociais na desmistificação da cultura machista. No entanto, a despeito de todos os esforços e mesmo considerando vitórias reais na desconstrução desses “normais”, o contexto pandêmico trouxe à luz o atraso do atual governo em relação à condição histórica das mulheres.  

Vou destacar aqui duas frases do atual Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que nos chamaram a atenção, já que nos remetem ao “normal”, e que serão nosso ponto de reflexão deste texto: 

“Mães, não levem suas crianças para tomar vacinas sem autorização da Anvisa”, afirmou o Ministro em meados de setembro do ano passado, no dia em que foi lançada uma portaria que suspendeu a vacinação de adolescentes entre 12 e 17 anos sem comorbidades. Ainda sobre o mesmo assunto, afirmou “A dona de casa se programa para um almoço para cinco pessoas, chega 20. E aí? Como é? Bota água no feijão? Não posso botar água no feijão da vacina. Não dá! Então, a gente só tem condição de entregar as vacinas de acordo com o cronograma do que foi previsto”. 

Quando o ministro se volta para as mães como aquelas que levarão ou não seus filhos para vacinar (abdicando inclusive da forma generalizada e “normal” usada com absurda frequência quando direcionamos um comunicado à família de crianças e adolescentes: “pais”), está reproduzindo e reforçando a ideia de que a responsabilidade é da mãe. Além disso, essa fala também nos empurra para outra reflexão, o papel do Estado nos processos decisórios e o direcionamento comum dado à população.  

Como observamos desde o início da pandemia, mas, sobretudo, desde que a vacinação infantojuvenil virou pauta no país, houve falta de um direcionamento claro, falta de liderança real, falta de um discurso que considerasse opressões históricas ao invés de reproduzir o senso comum, preconceituoso e injusto com as mulheres.

Também em setembro do ano passado, apesar do comunicado na página oficial do Ministério da Saúde, que optava “por recomendar a ampliação da oferta da vacinação contra a Covid-19 para a população de 12 a 17 anos sem comorbidades”, poucos dias depois, o ministro voltou atrás, e depois voltou atrás novamente. O que então “as mães” deveriam fazer? 

Já a segunda fala de Queiroga, em que ele faz uma comparação entre a dona de casa que coloca água no feijão e sua função dentro do ministério da saúde no que diz respeito à distribuição das vacinas para a Covid-19, é ainda mais explícita e exemplifica muito bem os discursos que reforçam os “normais” em relação aos gêneros.

Em primeiro lugar, o direito à alimentação é um direito humano que se materializa majoritariamente através das mãos das mulheres; da amamentação às refeições principais, e inclusive o que comemos fora de casa, geralmente preparado por mulheres. É óbvio que a fala de Queiroga representa uma realidade, porém uma realidade fundamentada em desigualdade de gênero, na medida que, em uma democracia do século 21, esperamos um papel contestador e progressista do Estado, ao invés de reforçar ideias machistas já tão difíceis de desconstruir.  

A pandemia da covid-19 não foi mais difícil para as mulheres apenas pelas falas do ministro da saúde e outros agentes do Estado. Foi difícil pois a lógica do machismo, que nos tranca em casa, que nos deixa solitárias com nossos filhos, que nos faz vítimas de abusos de todos os tipos, ganhou ainda mais força. Isolamento, solidão e sofrimento, condições não estranhas a muitas mulheres, na pandemia, ficaram ainda piores.  

Desafiadas a dar conta de trabalhar em home office, enquanto as crianças correm pela casa, ao mesmo tempo em que precisamos amamentar, cozinhar e limpar, e, muitas ainda, se submeter a relações abusivas e violentas de todos os tipos. Um contexto que já nos prejudicava, passou a prejudicar ainda mais. O isolamento social, fundamental para o controle da pandemia, afetou a integridade emocional de todos, mas principalmente das mulheres, que, além disso, também tiveram sua integridade física afetada, já que casos de violência doméstica aumentaram na pandemia.

Numa sociedade onde o inconsciente coletivo é guiado pelo Positivismo, que defende a ideia do constante progresso, nos deparamos com inúmeros retrocessos em todos os campos sociais. Quando nos vemos diante de discursos retrógrados e inações do Estado, ausência de políticas públicas claras e assertivas que amenizariam impactos negativos sobre toda a população, então pensamos que, na prática, nos falta positivismo, já que nos pegamos andando (coletivamente) para trás. 

O machismo estrutural segue firme e sendo reproduzido em discursos de agentes do Estado; durante a pandemia, de forma intensa. A falta de liderança governamental e direcionamento conciso neste momento de pandemia, aprofunda não apenas os impactos diretos da Covid-19, mas também aprofunda aspectos que interseccionam esse contexto, sobretudo a condição das mulheres.

Não à toa mulheres estão entrando em colapso mental, sendo maioria no uso de ansiolíticos e antidepressivos. Aquele velho “normal”, que prega que mulheres são loucas e descontroladas, é vazio de análise, já que as condições gerais não favorecem nosso equilíbrio e saúde mental. 

Em termos gerais, o Estado poderia ter tido não apenas um discurso livre de afirmações machistas, mas também poderia ter assumido sua responsabilidade diante da pandemia, com ações que amenizassem todos os problemas gerados pelo contexto.

Desde o início do governo, não apostei nenhuma ficha se quer em possíveis avanços nos direitos humanos, na economia ou qualquer outro setor, mas digo que a negligência do governo diante da pandemia e seus desdobramentos foi ainda pior do que poderia imaginar. 

5 1 vote
Article Rating
Subscribe
Notify of
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments