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“Quem realmente discute política, participa da política e faz política no Brasil, sendo político eleito ou não, são os homens”. Essa fala é de Arlene Martinez Ricoldi, professora universitária do curso de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC. Ela é uma das entrevistadas para esta reportagem, que busca discutir os 90 anos do direito ao voto feminino no Brasil. Partindo do sufrágio, ocorrido entre o fim do século XIX e o começo do século XX, até hoje, o quanto avançamos? 

Os números podem dar uma ideia inicial: as mulheres compõem quase 52% da população brasileira e 27% delas são mulheres negras. Contudo, ocupam apenas 15% das vagas no Congresso Nacional e as autodeclaradas pretas ou pardas somam apenas 2,36% dos parlamentares. 

Esses números fazem com que o Brasil ocupe o 140º lugar no ranking de países com maior representação feminina no Poder Legislativo, segundo levantamento feito pela União Interparlamentar, ligada à ONU. A lista é composta por 191 países e o primeiro lugar ficou com Ruanda, com 61,3% do Congresso ocupado por mulheres. 

Segundo Arlene, parte do que justificaria esses números no Brasil é a divisão sexual do trabalho, que atribui tarefas e responsabilidades para homens e mulheres por um princípio de separação e hierarquização que dita que aos homens é designado o trabalho produtivo, enquanto às mulheres é dado o trabalho reprodutivo. 

“O grande obstáculo em todas as nações ocidentais é a forma como homens e mulheres são vistos e os trabalhos a eles reservados. Havia uma ideologia no fim do século XIX e início do século XX que supunha uma família [com estrutura] semelhante à família burguesa. Isso tem a ver com o modo de produção industrial, com uma ideia de modernidade e urbanização em que o pai é provedor e a mãe cuidadora de uma casa, para que essa família se estabeleça e se reproduza. Esse seria o modelo ideal para atender esse modo de produção: o homem trabalha, volta para casa e os filhos estão bem cuidados, para que eles sobrevivam e reponham a força de trabalho do pai”, explica Arlene. 

A especialista diz que, como a participação política exige tempo e atenção, essa é uma energia que as mulheres geralmente não possuem, porque estão cumprindo outras tarefas. “As mulheres negras menos ainda, porque elas têm menos tempo, menos recursos, menos formação educacional. Inclusive, estão inseridas em famílias esfaceladas, não nucleares, por toda a consequência do sistema escravocrata. Assim, muitas famílias são chefiadas por mulheres, muitas vezes sem a presença do cônjuge. Elas têm menos acesso ao emprego, quem dirá participar da política, e ainda tem toda a parte de preconceito e discriminação.”

A professora ainda chama atenção para outra particularidade do sistema. “As mulheres brancas de classe média vão justamente explorar o trabalho dessas mulheres mais pobres, em geral negras, para poderem ter mais tempo. Então, são essas mulheres que muitas vezes conseguem alçar a política, porque elas têm estratégia para terceirizar o tempo de atenção que consome grande parte das mulheres em geral.”   

A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E O SUFRÁGIO

A divisão sexual do trabalho já vinha sendo incutida na população quando o Movimento Sufragista ganhou força aqui no Brasil, por mais que, talvez, naquela época, não fosse reconhecida nesses termos. Identificado como a primeira onda do movimento feminista no Ocidente e ocorrido entre o fim do século XIX e começo do XX, o sufrágio foi essencial para que o voto feminino se tornasse um direito e ganhou força em países como Inglaterra, França e Estados Unidos para, depois, repercutir por aqui.

“É um movimento de expressão das mulheres pela igualdade. Ele vem para que elas tenham alguns direitos civis, como o de trabalhar e se divorciar. Mas a expressão mais importante dessas demandas é o voto, visto como o direito mais basilar de uma pessoa existir civilmente e na esfera pública”, diz Alessandra Teixeira, também professora do curso de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC.  

Segundo ela, o Movimento acompanhou uma discussão sobre emancipação feminina, mas dentro de uma política conservadora. “Havia uma necessidade de convencimento por meio de um viés conservador, no sentido de dizer ‘a mulher pode ser mãe e honesta’, ela pode atender esses requisitos da moral e ainda assim trabalhar, ter educação e votar. A mulher era posta nessa lógica de convencimento: ela não deixaria de ser mãe, não perderia esse lugar na família”, explica a especialista. 

Embora muito tenha se passado desde o início do Movimento, até junho de 1931, foi nesta época que o então chefe de governo provisório, Getúlio Vargas (1882-1954), manifestou simpatia à conquista do voto feminino pelas mulheres. Ele recebeu, no Palácio do Catete, delegadas presentes no Segundo Congresso Internacional Feminista, evento realizado no Rio de Janeiro, que propunha a discussão de demandas trazidas por diversas organizações feministas da época e, a partir daí, considerou reconhecer o voto feminino como um direito, o que ocorreu de forma plena somente com a Constituição de 1932. 

No livro O Voto Feminino no Brasil (Edições Câmara, 2018) é possível ler que “o país estava preparado para o acolhimento dessas ideias, visto que elas não contrariavam a tradição da família brasileira”. “No fundo, a discussão era sobre qual o papel que a mulher iria obedecer: se era dentro de casa, que era o lugar posto para ela; ou se essa mulher iria ocupar a esfera pública e permanecer com os seus papéis familiares de mãe e mulher”, explica a professora Alessandra.

O VOTO FEMININO E A DEMOCRACIA: VOTAR BASTA?

A foto mostra uma manifestacao politica nas ruas. Em primeiro plano, uma mulher negra segura um cartaz rosa e olha diretamente para a câmera, com tom de seriedade e reinvindicação. Atrás dela, uma mulher branca, com máscara da Covid-19 está com o braço erguido em sinal de protesto. Outros braços na mesma posição aperecem na foto, mas sem identificar suas donas.
Ter direito ao voto é apenas uma das faces do exercício da democracia.

O que diz Alessandra vai ao encontro do que considera a professora Arlene. “Quando você permite o voto feminino, você não só faz isso, mas também inicia um debate público a respeito do que significa ser mulher, do que significa a igualdade entre homens e mulheres, o que, de fato, faz com que homens e mulheres sejam diferentes e se isso justifica a desigualdade ou não. Além disso, [você questiona] quais lugares as mulheres têm direito a ocupar”, opina ela. 

Contudo, logo ficou nítido que somente obter o direito ao voto feminino não garantia mudanças efetivas. Logo depois da conquista, a população entrou no período ditatorial do Estado Novo (1937-1945) e, ainda, descobriu-se que votar, por si só, não vencia as desigualdades existentes.

“Garantir o direito ao voto, o que praticamente todas as sociedades ocidentais conseguiram até meados do século XX, não diminuiu a desigualdade salarial, de renda e a divisão sexual do trabalho. Tudo isso o Movimento Sufragista não dá conta de abarcar”, explica a professora Alessandra. 

Ela ainda complementa dizendo que o voto feminino é necessário, mas é apenas o primeiro elemento de toda uma estrutura democrática. “O voto é um dos direitos, mas ele não dá conta da representação política. Tanto que hoje a gente tem ações afirmativas de cotas para aumentar essa representação, que ainda assim, no Brasil, é vergonhosamente baixa.” 

Uma dessas ações está assegurada na lei 9.504/97, que diz que “cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo”. Ainda, partidos políticos devem reservar pelo menos 30% dos recursos do Fundo Eleitoral para financiar candidaturas femininas. Caso o percentual de candidaturas seja superior ao mínimo de 30%, o repasse dos recursos do Fundo e o tempo de propaganda devem ocorrer na mesma proporção. 

Porém, “o fato de ter mulheres na política por si só também não garante que uma pauta de gênero, feminista ou de igualdade se manifeste”, explica Alessandra. “Esse governo [de Jair Bolsonaro] mostra exatamente isso: em todos os cargos estratégicos de direitos e minorias, ele coloca pessoas que não só não defendem esses direitos, como são absolutamente detratoras deles”, opina. 

“Damares [Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos do Brasil] tem uma postura misógina. A título de defender a família ela promove a misoginia e até um estímulo à violência contra a mulher. O mesmo ocorre com a Fundação Palmares, [até então presidida pelo jornalista Sérgio Camargo, recém exonerado do cargo e muito conhecido por diversas declarações racistas]. Essa é uma estratégia de um governo de ultradireita e ultrafascista”, ela diz.

A especialista aponta, ainda, para a necessidade de entender o exercício da democracia para além da expressão política por meio do voto. “A democracia é um conceito que precisa ser entendido na sua totalidade e na sua radicalidade. Não há democracia sem liberdades políticas [votar e ser votado], mas também não há democracia sem igualdade, ou seja, de fato garantir a dignidade das pessoas e a materialização dos direitos sociais, que vão implicar a igualdade social: o direito à saúde, ao trabalho, à educação, transporte e lazer, que dizem diretamente respeito à uma atuação positiva do Estado.”

A QUEM DESINTERESSA A PRESENÇA DAS MULHERES NA POLÍTICA?

Segundo Alessandra, ter mulheres presentes e atuantes no espaço político desafia o status quo, o estado das coisas. “A parte mais evidente que demonstra o incômodo causado quando se tem mulheres na política é a violência política de gênero. Incomoda que a mulher ocupe espaços que possam combater fenômenos tão perversos como a subordinação, a desigualdade e a desigualdade de determinadas mulheres. Quando elas começam a conquistar o espaço político, que ainda é profundamente masculino, a gente vê como de fato é perigoso, como existe um lugar que [teoricamente] não se deve ocupar, porque ele ameaça de fato as estruturas patriarcais e da branquitude”, explica. 

Um pouco do que fala Alessandra pode ser visto na coletânea Sempre Foi Sobre Nós (Instituto E se Fosse Você?, 2021), organizada pela ex-deputada Manuela D’Ávila (PCdoB), que reúne relatos da violência política de gênero no Brasil. Contado por 15 mulheres, o livro traz histórias da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), da deputada federal Benedita da Silva (PT), da ex-senadora Marina Silva (Rede) e da líder indígena Sônia Guajajara (PSOL), entre outras mulheres.

Mais do que ler os relatos, no livro é possível relacionar a violência política de gênero com a fragilidade da democracia e da sociedade brasileira. Em seu texto, a deputada federal Talíria Petrone (PSOL) escreve que “a violência política de raça e de gênero se inicia antes mesmo de existir o que hoje chamamos de Brasil. Ela começou com a invasão portuguesa, se construiu com pilhas de corpos indígenas, com o sequestro, a expatriação e a tortura de milhares de corpos de pessoas do continente africano e fundou o Estado brasileiro”.

“Se é fato que há uma elite – branca, rica, proprietária de terra, masculina, hétero cisnormativa, fundamentalista – que desde os tempos coloniais ocupa majoritariamente o poder no Brasil, explorando nossa classe, é também notório que qualquer corpo que ouse enfrentá-lo não é bem-vindo no jogo da política institucional. Quando, por exemplo, nós, mulheres negras, ocupamos esse espaço com esse propósito, assustamos os que historicamente dominam. Política não é entendida como lugar de mulher, porque poder não é para mulher. Mulher não pode. Porque o espaço público não é para mulher. O lar e o cuidado são reservados para nós.” 

A deputada continua o relato retratando diversos ataques racistas, misóginos e sexistas que sofreu por meio das redes sociais ao longo de sua atuação política e depois escreve: “é impossível apartar esses ataques da compreensão de que o racismo nos estrutura. Nenhuma relação social no Brasil pode ser pensada sem a dimensão racial. Os séculos de escravidão não foram plenamente superados, e o Estado brasileiro não ofereceu para nós, negras e negros, qualquer reparação.” 

“O mesmo ‘mecanismo’ racista que permite que uma vereadora ou deputada seja chamada de negra nojenta possibilita […] que as mulheres negras sejam as maiores vítimas de violência obstétrica. Esse mesmo mecanismo está evidente no feminicídio, que é negro; na mortalidade materna, que é negra; nas vítimas de letalidade policial, negras. Esse mesmo mecanismo permite que ainda existam ‘quartinhos de empregada’ no Brasil – sem janelas e sem direitos -, permite que a execução de Marielle [Franco, assassinada a tiros em 2018] – mulher preta -, mais de dois anos e meio depois, ainda não tenha solução. A cruel ligação do racismo que estrutura todas as instituições brasileiras com o patriarcado e com a barbárie do capitalismo é cada vez mais escancarada. […] É violento ser mulher negra na política porque é violento ser mulher negra neste Brasil”, finaliza Talíria Petrone. 

EDUCAÇÃO É BASE PARA TRANSFORMAÇÃO POLÍTICA

Para a professora Alessandra, “é com a educação que se desmonta estigmas, naturalizações, formas de pensar e agir que estão muito incrustadas e naturalizadas [na sociedade]. É um processo lento, demorado, disputado, que passa por uma nova cultura. É aí que a gente consegue transformar [a política]”. 

É preciso promover uma cultura de respeito às mulheres, respeito e compreensão sobre o gênero, sobre a liberdade, sobre a compreensão dos processos históricos. A educação não se pratica só na sala de aula. A imprensa também é educadora, além dos espaços midiáticos, que infelizmente, fogem ao controle de mediações, como canais no youtube, blogs e podcasts. Tudo isso também é difusor de informação e acaba sendo uma instância que educa e deseduca”, ela opina.

ELEIÇÕES 2022

Foto de uma mulher depositando voto feminino na urna eleitoral.
Brasil terá eleições gerais em outubro deste ano e regularização do título deve ocorrer até 4 de maio.

Além dos 90 anos do direito ao voto feminino no Brasil, este ano também está marcado por outro acontecimento político: as eleições gerais. Desta vez, o país irá eleger deputados estaduais e federais, governador, senador e presidente da República. O primeiro turno está marcado para o dia 2 de outubro e o segundo, se necessário, será no dia 30 do mesmo mês. 

Como previsto na Constituição Federal, o voto é obrigatório para todas as pessoas entre 18 e 70 anos. No entanto, caso queiram, pessoas com mais de 16 anos também podem tirar o título eleitoral e participar do processo de votação. Qualquer regularização ou emissão da primeira via do título deve ser feita até 4 de maio, data em que ocorre o fechamento do cadastro eleitoral. Quem não votar ou não justificar a ausência, terá de pagar multa.   

O QUE REPRESENTA CADA UM DOS CARGOS ABERTOS EM 2022

PRESIDENTE DA REPÚBLICA

É o cargo mais alto do país e a autoridade máxima do poder Executivo. A pessoa eleita, aqui, nomeia ministros, aplica ou veta leis aprovadas pelo Congresso, propõe emendas à Constituição e projetos avaliados por deputados e senadores, como a criação de universidades federais, por exemplo. 

Quem está na Presidência é responsável por manter a relação com Estados estrangeiros e também por nomear comandantes da Aeronáutica, da Marinha e do Exército, entre outras funções. O mandato deste cargo é de quatro anos com direito a uma reeleição. 

GOVERNADOR

É a pessoa que representa um estado da federação em todas as suas relações, sejam elas  jurídicas, administrativas ou políticas. Isso significa que uma das suas funções é defender os interesses do seu estado junto à Presidência da República. 

Além disso, governadores também comandam as polícias civil militar, responsáveis pela segurança pública; cuidam da infraestrutura do estado, como estradas, portos, aeroportos e transporte intermunicipal e interestadual; destinam parte da receita do estado para a saúde e educação; e também podem sancionar e vetar leis criadas pelos deputados estaduais, entre outras funções. O mandato também é de quatro anos com direito a uma reeleição. 

SENADOR

Senadores formam o Senado Federal, que junto com a Câmara dos Deputados, compõe o Congresso Nacional, o chamado Poder Legislativo. Cada estado elege três senadores, que têm mandato de oito anos. Como em 2018 dois terços do Senado foram renovados, este ano se vota apenas em uma candidatura para o cargo. 

Senadores são responsáveis pela elaboração das leis e pela fiscalização dos atos do Poder Executivo. Essas pessoas aprovam as escolhas de ministros, propostas da Presidência e operações financeiras. 

DEPUTADO FEDERAL

Integrante da Câmara dos Deputados, tem como principal função a elaboração de leis e também é responsável pela fiscalização do Poder Executivo. O número de deputados eleitos está diretamente relacionado ao número de habitantes de um estado. No máximo, podem haver 70 representantes e, no mínimo, oito. Não há limites para reeleição. 

DEPUTADO ESTADUAL

É responsável por legislar, criar, alterar e vetar leis no âmbito regional. Também pode se reeleger diversas vezes. 

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