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A palavra representatividade vem ganhando espaço nas discussões sociais, e não poderia ser diferente quando se trata de política. Sendo os poderes executivo e legislativo responsáveis pela formulação de políticas públicas, que derivam de demandas sociais, a composição desses poderes deveria ser fiel à composição da sociedade.

Representantes políticos devem entender diretamente sobre aquilo que a população precisa e então formar projetos e leis de acordo com as necessidades. Pensando assim, o processo parece muito fácil, mas a realidade do Brasil é outra: o país vive uma crise de representatividade política e, como consequência, alguns grupos sociais seguem sem conseguir ecoar suas vozes e reivindicações dignas.

As maiorias minorizadas, conceito definido pelo escritor e cientista social, Richard Santos, mostra que considerar as pessoas pretas como minoria é um equívoco, pois a população negra representa 54% dos brasileiros e, ainda assim, luta contra os mecanismos de inferioridade. Um deles é a falta de políticos pretos que pensem nas realidades dos seus semelhantes.

O escritor acredita que, além da representatividade por si só, existe uma escassez de comprometimento para mudar a realidade:

“Não acredito na representatividade pela representatividade. Talvez ela já exista e não é de hoje. O que falta para essa Maioria Minorizada fazer uma revolução social? Acredito que se livrar das amarras da mentalidade escravista que enevoa a todas as pessoas brasileiras com mais ou menos intensidade. Agir pela coletividade, romper as barreiras da colonialidade que têm nos aprisionado e nos colocado nesta camisa de força do individualismo e apostar num sistema socializante”, relatou.

O LADO EXCLUDENTE DA POLÍTICA BRASILEIRA

A formação da organização política no Brasil não deu espaço para a representatividade e até hoje caminha em pequenos passos nesse quesito.

De acordo com o artigo “Crise de Representatividade Brasileira: Influência da Hegemonia de Grupos e Democracia Representativa”, escrito por Larissa Moreira Ribeiro Alves e Yasmim Mencher, a falta de representatividade política no país faz parte de um sistema.

“A elite brasileira, retratada por grandes empresários e ruralistas e seus respectivos interesses, sempre esteve bem representada, mesmo nos governos populares, no âmbito político”, explicam as autoras.

O estudo, publicado na Revista de Ciências do Estado, da UFMG, em 2018, traz um contexto histórico da democracia nacional e sobre a falta de consciência política que assola os brasileiros.

“A democracia brasileira, ou pelo menos a pretensa democracia brasileira, está presa em meio aos conchavos políticos. Assim, pode-se visualizar um grande problema da nossa democracia representativa: os cidadãos, enquanto supostos sujeitos ativos do processo democrático, passam a ser apenas reprodutores de valores que não são nem mesmo próprios”, discorre o artigo.

O coronel Chico Heraclio mandou na cidade do Limoeiro (PE) e afirmava que as eleições em sua cidade "tinham que ser feitas por mim"
O coronel Chico Heraclio mandou na cidade do Limoeiro (PE) e afirmava que as eleições em sua cidade “tinham que ser feitas por mim”

O problema, porém, vai muito além da escassez de consciência da população, incluindo os chamados acordos políticos, que afetam o funcionamento da democracia. Nesse cenário, fazer a diferença é uma tarefa de extrema necessidade e, por isso, as candidaturas representativas são importantes para construir políticas eficazes para as diversas camadas da população.

AUMENTO DAS CANDIDATURAS NEGRAS É SINÔNIMO DE REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA?  

Dados de uma análise realizada pelo G1 mostram que nas eleições de 2020 foi registrada a maior proporção e o maior número de candidatos negros da história. De acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), exatamente 50% dos candidatos se declararam pardos ou pretos, raças que seguindo a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), formam a população negra. Inclusive, entre os candidatos ao cargo de vereador, o percentual ultrapassou os 51%.

Ao olhar os números, é possível afirmar que a representatividade política pode ser uma realidade. Mas mesmo com a intenção de ocupar espaços, os negros seguem em desvantagem, já que a maioria de vereadores eleitos, em 2020, é branca, somando quase 54% das Câmaras Municipais.

Outro ponto crucial é que 22 dos 26 estados brasileiros contam com mais políticos brancos, sendo que a maioria dos habitantes são negros. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, quase 66% dos vereadores eleitos são brancos, porém essa população corresponde apenas a 45,4%.

Esse panorama comprova que apenas o número de candidatos não é suficiente para formar uma representatividade política.

Infográfico sobre Representatividade Política no Brasil, nas eleições de 2020
Infográfico sobre Representatividade Política no Brasil, nas eleições de 2020 | Fonte: Autoral, dados do TSE

RAÇA E GÊNERO: AS BARREIRAS DE UMA DEMOCRACIA DE PRIVILÉGIOS

O salto no número de candidaturas negras foi fenômeno que teve início em 2018, porém, vale ressaltar que o TSE só começou a classificar as raças dos candidatos no ano de 2014. Na intersecção racial, outro recorte merece foco: o de gênero, considerando que mulheres negras enfrentam uma caminhada mais árdua, com menos privilégios e espaços para ocupar.

A cientista social e pesquisadora, Andrea Franco, que produziu o artigo “Marielle virou semente: representatividade e os novos modos de interação política da mulher negra nos espaços institucionais de poder”, analisou a falta de representatividade política pelo viés racial e de gênero. Segundo ela, é de conhecimento geral que os setores da democracia brasileira ainda são dirigidos por homens.

“A sub-representação partidária e institucional das pessoas negras e, especialmente, das mulheres negras é uma preocupação de longa data no feminismo negro,“ afirma Andrea.

Se a busca por representação tem uma jornada de longa data, é de se esperar que os resultados apareçam com mais frequência. Podemos citar políticos negros que foram emblemáticos para o desenvolvimento do país e leis que beneficiam a população preta, como por exemplo a de cotas raciais nas universidades e concursos, Lei de ensino da história negra, e o Estatuto da Igualdade Racial.

Por outro lado, o assassinato de uma vereadora negra em pleno exercício da democracia permanece impune. Os dois lados comprovam que a política brasileira ainda caminha a passos curtos para uma democracia diversa e respeitosa.

“Com Marielle, a luta das mulheres negras, do feminismo negro, e a participação institucional político-partidária ganharam nova visibilidade. E, por outro lado, eclodiu-se um sentimento de revolta e necessidade de resposta entre as ativistas e militantes negras”, discorreu Andrea, na pesquisa.

marielle franco - Colagem da revista Elástica (2020)
Marielle Franco, símbolo da representatividade política | Fonte: Colagem da revista Elástica (2020)

As sementes de Marielle Franco, como são chamadas as candidatas que se espelharam no legado da vereadora, fomentam a discussão da igualdade racial dentro da democracia. Além disso, podem ser responsáveis pelo salto de candidaturas citado.

“Embora essa seja uma arena muitas vezes desacreditada, o espaço da política institucional sempre foi disputado pelas mulheres negras. O crime brutal contra a vereadora Marielle Franco jogou os holofotes sobre essa arena e exibiu, levadas às últimas consequências, as violências a que as mulheres negras que ousam ocupar esse espaço estão submetidas”, relata a cientista social.

É importante ressaltar que as mulheres negras tiveram uma participação expressiva na política, como mostra Andrea Franco. “Lélia González participou da constituição do Partido dos Trabalhadores (PT) e também denunciou os mecanismos partidários racistas que sabotavam candidaturas negras. Benedita da Silva direcionou sua luta política disputando cargos executivos e legislativos”, finaliza ela.

O movimento Mulheres Negras Decidem é outro exemplo da luta feminista atrelada às pautas antirracistas. “Nós somos mulheres organizadas em todas as cinco regiões do Brasil, pensando em como vamos potencializar candidaturas negras, como vamos garantir que mulheres negras estejam na competição política de uma forma onde o corpo da mulher negra seja reconhecido de fato”, afirma a articuladora do movimento, Ana Paula Rosário.

Ana Paula Rosário - Articuladora do movimento Mulheres Negras Decidem sobre a Representatividade Política
Ana Paula Rosário – Articuladora do movimento Mulheres Negras Decidem sobre a Representatividade Política | Fonte: Arquivo Pessoal

Além de incentivar essas candidaturas, o Mulheres Negras Decidem tem o foco na formação política e na consciência social. Se entender como um cidadão em busca de melhorias democráticas pode ser um processo longo, principalmente para os indivíduos que são colocados à margem da sociedade.

QUEM FAZ PODER? O ÁRDUO CAMINHO ATÉ A REPRESENTATIVIDADE POLÍTICA

Congresso Brasileiro e a falta de Representatividade Política
Congresso Brasileiro e a falta de Representatividade Política | Fonte: Agência da Câmara, em 2018

“A representatividade política no Brasil praticamente não existe. Nós temos 513 cadeiras no congresso, das quais apenas 21 são ocupadas por pessoas negras. A gente percebe o quanto é desigual, não só o processo de disputa eleitoral, mas de disputa nessas candidaturas”, diz Ana Paula Rosário.

De acordo com ela, as candidaturas negras são impulsionadas pelos movimentos sociais e travam uma batalha para conquistar os espaços a nível de igualdade. É possível perceber que essa lacuna de candidatos negros preenchida por pessoas brancas afeta diretamente a sociedade.

“Nós somos uma população que em sua maioria é negra e não acessa direitos, não tem comida no prato, não tem educação de qualidade, emprego digno, direitos básicos. Quando não temos pessoas nesses espaços, que representem esse povo e que conhecem a situação social, a gente está deixando de lado vários projetos que podem beneficiar. É preciso, sim, que exista representatividade para que outras pessoas ocupem esses espaços”, afirma.

As candidaturas com pautas sociais definidas são vistas como ideológicas e por isso nem sempre recebem o apoio necessário. A política é um conchavo, onde as ligações e conexões precisam ser estabelecidas para que o candidato obtenha o suporte necessário.

Porém, a mentalidade de manter o status quo, ou seja, o poder na mão do mesmo é uma saída vantajosa para os times que estão vencendo. Em uma batalha ideológica, os direitos básicos dos grupos seguem sendo negados e assim as individualidades podem ser apagadas.

Por isso, Rosário acredita na formação política e no entendimento coletivo como uma maneira de mudar o cenário. “É necessário investimento político e ideológico nessas candidaturas negras, LGBTQIA+, candidaturas indígenas. Precisamos de reconhecimento político, precisamos mudar a imagem do poder e o entendimento de quem pode possuir esse poder”, diz.

A política brasileira foi desenhada como um poder unilateral que ficava na mão dos coronéis latifundiários. Com o passar dos anos, a figura ganhou um toque moderno, alguns mudaram de ramo, mas a imagem é a mesma. Nesse contexto, para criar um ambiente representativo é necessária uma transformação na mentalidade e na estrutura construídas.

Para Richard Santos, a única maneira de alcançar esse patamar é se organizando e buscando pessoas negras engajadas com as pautas antirracistas e progressistas. “Pessoas negras oriundas da Maioria Minorizada e comprometidas com a transformação social. Caso contrário, não podemos esquecer que temos, tivemos e teremos pessoas negras a serviço dos interesses dos capitães do mato.”

ELEIÇÕES 2022: COMO CRIAR UMA DEMOCRACIA DE REPRESENTATIVIDADE?

Nesse ano serão eleitos presidente, vice-presidente, governadores, vice-governadores, senadores, deputados federais e estaduais. Uma eleição com tantos candidatos tende a confundir a população, ou pelo menos fazer com que as escolhas se tornem obrigação. De acordo com a definição, um cidadão político tem seus deveres e direitos, entre eles o voto, para constituir uma democracia com representantes responsáveis.

A representatividade política
A representatividade política | Fonte: Foto – Antonioni Cassara/Mídia Ninja

Como explicou Ana Paula Rosário, a representatividade política deve ser sempre motivada pela busca de direitos para as populações. “Quando temos pessoas periféricas, por exemplo, dentro das casas legislativas brasileiras, nós temos projetos de vida que são diferentes dos oferecidos atualmente.”

Essa é uma boa forma de criar um cenário menos excludente, mas, para isso, a movimentação social é indispensável. Os primeiros passos envolvem saber em quem se vota e o porquê de fazê-lo. O momento de ir às urnas está próximo, mas ainda dá tempo de se informar e contribuir para uma democracia mais representativa.

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