Separar para enfraquecer

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Que bonito é ver uma pauta feminista conquistando o holofote em um evento de proporções globais como as Olimpíadas. A equipe alemã de ginástica, liderada pela atleta Sarah Voss, fez história ao entrar em cena internacional com collants que cobrem as pernas, em protesto à sexualização do corpo feminino.

A luta por equidade de gênero no ambiente esportivo não é novidade, tampouco é a batalha por uniformes mais confortáveis e menos “atraentes”. Ainda este ano, outra situação que chamou a atenção da mídia internacional foi a punição de 1,5 mil euros concedida à equipe norueguesa de handebol de areia, por uso de uniforme inadequado no campeonato europeu. Para a competição, as atletas optaram por jogar de shorts ao invés do tradicional biquíni.

Não há dúvidas da importância de que debates sobre sexualização de corpos, compatibilidade de salários e equidade em participação e oportunidades sejam emplacados em espaços desportivos. Afinal, quer evento mais político do que os Jogos Olímpicos?

E, aqui, um parênteses (enquanto a não conquista desses direitos básicos esteja naturalizada, há, sim, a necessidade de traze-los à tona, em qualquer que seja a esfera – não há pausa para as Olimpíadas). No entanto, vale o questionamento: a quem a batalha dos uniformes beneficia? E, também, para quem a demanda está sendo exigida?

Não há muito tempo, uma batalha similar foi travada por desportistas aquáticos negros, mas o resultado foi diferente. No início de julho, véspera de Olimpíadas, a Federação Internacional de Natação (Fina) vetou o uso competitivo das toucas Soul, feitas para ajustar e proteger dreadlocks, afros, tramas, extensões de cabelo, tranças, e cabelos grossos e encaracolados. A justificativa da Fina foi a de que o equipamento seria inadequado por não seguir “a forma natural da cabeça”.

A proibição foi reivindicada por atletas negros e membros de grupos antirracistas com o argumento óbvio – não para todos, infelizmente – de que a atitude reforça a falta de representatividade da comunidade nas piscinas, fruto do racismo estrutural. A própria federação divulgou em comunicado geral que iria reavaliar a decisão, mas até o presente momento – com apenas uma semana para o fim dos Jogos em Tóquio, diga-se de passagem – nada mudou.

O protesto pela liberação, em si, não se trata do uso ou não da touca pelos atletas, mas sim da possibilidade de fazê-lo, se o desejarem. Percebem como o objetivo-fim da luta é o mesmo que o das ginastas alemãs? A diferença, contudo, é que a batalha desapareceu da mídia internacional tão rápido quanto chegou à ela.

Existe uma mania de separar movimentos sociais em caixinhas. Há algo de necessário nisso, pois apenas assim é possível entender demandas interseccionais e enaltece-las com suficiência e visibilidade. Mas, também, há algo de muito perverso nisso, e está logo ali, no título: separar para enfraquecer.

A mídia, talvez de forma inconsciente – mas como reflexo da desigualdade coletiva – desconsidera a luta por toucas confortáveis das mulheres negras como parte do movimento feminista por uniformes, também, mais confortáveis. Aos olhos dos veículos de comunicação, seriam as mulheres negras menos mulheres? Estariam eles reafirmando o que disse Grada Kilomba, ao classificar a mulher negra como “o outro do outro”?

É desconfortável admitir que a mídia não é a única a fazê-lo; que um dos mais belos dos movimentos, o feminismo, também faz jus às palavras de Kilomba. Não há nada de justo, ou até mesmo sensato, em fazer com que a mulher negra tenha que escolher entre a caixinha do antirracismo ou do feminismo, principalmente se dentro de cada uma delas, ela não será prioridade.

Mas o que parece é que é menos ameaçador ver mulheres brancas hasteando a bandeira dos uniformes confortáveis, do que vê-las fazendo o mesmo, lado a lado com as mulheres negras. O quão potente não seria esse encontro de “outros”? É provável que muitos já saibam a resposta para essa pergunta e, justamente por isso, desestimulam a coalizão. 

Bom, já passou da hora de exercitarmos essa potência e a boa notícia é que para tal não é preciso autorização de ninguém. As lutas feministas são de todas as mulheres! Bora colocar isso em prática.