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No Brasil, a violência doméstica é um problema já conhecido. São inúmeros relatos, casos e processos de pessoas que já sofreram pelo menos um dos cinco tipos de violência previstos em lei: física, sexual, psicológica, moral ou patrimonial. O antigo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), atual Ministério dos Direitos Humanos, divulgou dados em 2022 de que, no primeiro semestre do ano passado, foram registradas mais de 31 mil denúncias e cerca de 169 mil violações envolvendo a violência doméstica contra as mulheres. Em contrapartida, pouco se sabe sobre violência doméstica em casais LGBTQIA+.

Instituições de todo o país — e do mundo — já antecipavam um número grande de violências cometidas no âmbito doméstico, já que, nos últimos anos, a crise sanitária sem precedentes da Covid-19 assolou a comunidade global, tendo o isolamento social como uma das principais medidas de proteção. O isolamento se mostrou uma faca de dois gumes para muitas mulheres que já viviam em risco de vitimização e ainda mais para lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais, já que estar em casa se tornou um prato cheio para as violências causadas pela intolerância da própria família.

Essa interseção entre pandemia e a LGBTfobia já havia sido motivo de alerta da Organização das Nações Unidas (ONU) ainda nos primeiros meses da crise sanitária. Em abril de 2020, foi divulgado um comunicado antecipando sobre como a emergência sanitária aumentaria as violências sofridas por pessoas da comunidade.

Como previsto, o aumento da violência doméstica contra mulheres foi divulgado pelo ministério público, mas a lacuna deixada referente aos dados sobre os crimes domésticos entre casais homoafetivos provocou o questionamento sobre a não computação dessas informações quando se trata da comunidade LGBTQIA+.

Há poucos dados, estudos ou literatura sobre o assunto. Sabe-se que ONGs como a Casa Arco-Íris, Casa1 e a organização Chama prestam apoio e socorro para a comunidade, mas onde mais conseguir apoio? Como procurar informações? A vítima LGBTQIA+ entra em contato com o disque 100, o 180 ou nenhum dos dois? O primeiro pedido de socorro deve ser feito às ONGs e atendimentos especializados não governamentais? São muitas as dúvidas.

No caso de mulheres, lésbicas, bis, cis-gênero ou trans, a Lei Maria da Penha (11.340/2006) protege as brasileiras de agressões físicas, morais, patrimoniais e psicológicas. Já no caso de homens gays, bis, cis-gênero ou trans, a legislação não fica tão clara. Nesse ponto, a advogada brasiliense Ana Pereira afirma que:

“A Lei Maria da Penha pode ser aplicada em casais homoafetivos, não existindo nenhuma discriminação entre heterossexuais e homossexuais, inclusive em relações entre homens. Segundo o Supremo Tribunal Federal (REsp 1623144/MG), as relações homoafetivas não estão desassistidas, pois, não é necessário envolver ‘o binômio agressor homem e vítima mulher’, basta que exista uma desigualdade, onde um dos companheiros esteja em uma situação vulnerável.” 

A advogada deixa claro que, “ainda que o termo ‘violência doméstica’ esteja usualmente vinculado a casais heterossexuais, as agressões em relações homoafetivas estão suscetíveis à violência da mesma forma. A violência não é restrita à orientação sexual, uma vez que os casais homossexuais estão sujeitos às agressões verbais, físicas, psicológicas, patrimoniais, morais e sexuais, assim como qualquer outro casal.”

Já Luiza Ferreira, advogada criminalista e de direitos das mulheres, discorda de alguns pontos apresentados por Ana Pereira. Ela explica que, na sua experiência, há, sim, aspectos de gênero ligados à Lei Maria da Penha.

“Nas DEAMs (Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher) onde trabalhei, nem se atende [homens gays]. Não digo que ela está errada. De fato, violência doméstica não está restrita a relações heterossexuais, e os tribunais entendem que não existe necessidade de que o agressor seja homem para ter a medida concedida. Mas se exige em todos os julgados e doutrinas que conheço que a vítima seja mulher (não importando, nesse sentido, se a mulher é cis ou trans). A Lei Maria da Penha pode ser aplicada em casais homoafetivos (isso é pacífico), desde que a vítima seja mulher” pontua Luiza.

A advogada ainda completa seu raciocínio reconhecendo a importância de uma legislação que ampare especificamente as vítimas que se identificam como homens (cis ou trans). “E também não digo que a gente, como sociedade, não devia pensar uma proteção legislativa específica para homens gays em situação de violência doméstica; precisa, e com urgência, porque o problema existe. Mas a LMP não é a resposta, no meu entendimento”.

OS TIPOS DE VIOLÊNCIA, SEGUNDO A LEI

A lei brasileira classifica a violência em cinco tipos de agressões. Segundo a própria Lei Maria da Penha, no artigo 7, a primeira categoria é a da violência física, “entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal”, ou seja, violência física inclui qualquer ação que atinja negativamente a integridade ou a saúde do corpo de um indivíduo. Atitudes como bater, espancar, empurrar, atirar objetos na direção de alguém, sacudir, chutar, apertar, queimar, cortar, ferir e semelhantes configuram esse tipo de violência.

Na segunda categoria, também fácil de classificar, está a violência sexual, entendida como qualquer “conduta que constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”.

A terceira tipificação, a violência psicológica, apresenta nuances menos fáceis de entender e identificar. Ela é descrita como “qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição insistente, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”.

Outra categoria sujeita a interpretação de nuances é a “violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria”. Esse tipo de agressão pode ser caracterizada por boatos inventados pelo agressor para afastar amigos da vítima, por exemplo; ou até situações mais graves como mentir para que o indivíduo perca o emprego.

Há também a violência patrimonial, caracterizada por “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”.

FALTA DE INFORMAÇÃO PARA AS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Além dos diversos problemas e situações de violência vividos por pessoas LGBTQIA+, existe pouco material voltado para a informação da população e fomento de políticas públicas.

A advogada Luiza Ferreira informa que “as instituições estatais que lidam melhor com isso são os CAPS e CREAS; em alguns estados, como o DF, há inclusive CREAS especializados na vivência da comunidade LGBTQIA+”. A profissional afirma, também, que, por via de regra, assistentes sociais estão melhor informados do que policiais, defensores e promotores, mas essas também são instituições que oferecem auxílio e informação, particularmente quando possuem departamentos especializados. 

Não é de hoje que pessoas com melhores condições financeiras acabam com mais estudo, oportunidade e uma defesa especializada. Essa situação é ainda mais evidente quando alguém é vítima de um crime desse porte e deve procurar a justiça. A Dra. Ferreira reforça o que já sabemos, mas também dá dicas de onde pessoas da comunidade podem encontrar algumas informações. 

“Para quem tem condições de contratar um advogado especializado, essa costuma ser uma opção inteligente. Fora isso, a internet tem alguns sites de organizações que são bastante informativos e dão acesso à ajuda, como o site da Themis; o Mapa do Acolhimento; o site da Associação Nacional de Travestis e Transexuais — Antra, dentre tantos outros”, explica a advogada.

No entanto, mesmo com o poder da internet e a incrível capacidade de disseminação de informação, devemos lembrar que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 7,28 milhões de núcleos familiares ainda permaneciam sem conexão em 2021. A disparidade fica ainda mais gritante se colocado na balança o valor de livros e revistas especializadas.

Luiza Ferreira chama atenção, também, para a dificuldade de se encontrar juristas que se especializam neste tipo de defesa:

“O estudo sobre violência doméstica e as questões legais que dela advêm já é, por si só, um estudo de nicho — verdade seja dita, não são muitos os juristas que se ocupam especificamente disso. A situação fica mais complicada quando falamos de violência doméstica na comunidade LGBTQIA+; a complexidade dos casos tende a dobrar em razão dos tipos de atenção que é preciso dar. Isso porque é mais difícil fazer a própria comunidade (que dirá um juiz) entender que não é porque uma mulher se relaciona com outra(s) mulher(es) que ela não está passível de violência de gênero (e o mesmo vale para homens) — afinal, o machismo que dá origem à violência doméstica é uma questão estrutural, e não individual.”

O QUE FAZER E A QUEM RECORRER EM CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA?

Apesar de não existir uma receita exata do que fazer em situações de violência doméstica, ambas as advogadas Luiza Ferreira e Ana Pereira chamam atenção para o quão cruciais certos cuidados são, tanto na hora de denunciar o crime sofrido quanto no que diz respeito a manter-se em segurança. 

A Dra. Ferreira lembra que um bom começo é sempre procurar ajuda em um lugar provável de acolhimento, que pode ser tanto a casa de um amigo ou familiar, quanto uma instituição estatal, ou o escritório de um profissional do direito que tenha experiência, ou especialização no assunto.

Ela ainda pondera sobre a dificuldade de passar dessa fase por conta própria e diz que “não é que seja impossível sair de uma situação de violência sem ajuda, mas é muito mais fácil, rápido e seguro se alguém auxilia a gente. É importante, na hora de sair de uma situação de violência, buscar um local de acolhimento que a gente saiba que encontrará empatia e paciência acima de qualquer outra coisa. Em seguida, traçar um plano de segurança para que a pessoa sobrevivente possa se proteger de agressões (físicas ou psicológicas) futuras. O momento de maior risco para a vítima é logo após a separação, porque a pessoa abusadora sente que está perdendo o controle e muito frequentemente escala a violência nesse momento”.

Ainda falando sobre o processo de proteção contra possíveis retaliações, Luiza afirma que existe a “necessidade de traçar um plano de segurança, entendendo qual o grau do risco ao qual a pessoa sobrevivente está submetida. Homens vítimas de violência doméstica devem dar preferência a um profissional especializado ou a organizações especializadas, tendo em vista que os casos de violência contra eles não serão atendidos por Delegacias da Mulher nem cobertos pela Lei Maria da Penha, de forma que o caminho para a segurança vai ser, provavelmente, menos estatal e/ou institucionalizado” conclui.

A Dra. Ana Pereira destaca que outro passo essencial para cessar a situação de violência seria se dirigir a uma delegacia de polícia, podendo ser a Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM) onde a ideia central é amparar todas as mulheres que sofrem violência doméstica e intrafamiliar, mas as delegacias comuns também devem amparar vítimas, independente do gênero. A advogada admite, no entanto, que para homens gays o passo de denúncia pode ser confuso porque, segundo o Superior Tribunal de Justiça (STJ), a Lei Maria da Penha segue certa restrição de gênero. 

“Tecnicamente, a Delegacia da Mulher não pode recusar demanda em razão do gênero, uma vez que existem decisões em Tribunais Estaduais, como em Minas Gerais e Rio de Janeiro, onde foram aplicadas medidas enunciadas na lei Maria da Penha em casais [de homens] gays. Mas existe controvérsia, pois o Superior Tribunal de Justiça, STJ, admite a aplicação da Lei Maria da Penha em relações homoafetivas entre mulheres e não entre homens. Segundo entendimento da Corte Superior de Justiça, tal lei deve ser aplicada quando envolver violência contra a mulher, estendendo esta aplicação às mulheres trans. Logo, a aplicação da supracitada norma seria afastada em relação aos homens”, pondera Ana.

Seguindo essa divisão por questões de gênero, existem dois canais de denúncia úteis para a população. O primeiro é o tão conhecido 180. Esse canal, antes gerido pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) e agora gerido pelo Ministério dos Direitos Humanos, e é exclusivo para mulheres, podendo ser acionado por ligação, pelo e-mail ligue180@www.gov.br/mdh/pt-br, pelo aplicativo Proteja Brasil ou na Ouvidoria Online.

O segundo canal de denúncia, menos difundido do que o anterior e mais abrangente, é o Disque Direitos Humanos, ou apenas, Disque 100. Denúncias podem ser feitas por ligação pelo site da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH) e pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil. Ainda há o Telegram, basta buscar “Direitoshumanosbrasil” e o WhatsApp (61) 99656-5008. 

Esse serviço é mais geral e voltado para disseminação de informações sobre direitos de grupos vulneráveis e de denúncias de violações de direitos humanos, sendo as violências doméstica e intrafamiliar dois assuntos de domínio do serviço. No próprio site do Governo Federal (gov.br) o Disque 100 é descrito como o “pronto-socorro dos direitos humanos e atende graves situações de violações que acabaram de ocorrer ou ainda em curso, acionando os órgãos competentes e possibilitando o flagrante”. Ainda no site gov.br são descritas as principais populações vulneráveis e situações de vulnerabilidade nas quais o Disque 100 é especializado. São elas:

  • Crianças e adolescentes
  • Pessoas idosas
  • Pessoas com deficiência
  • Pessoas em restrição de liberdade
  • População LGBTQIA+
  • População em situação de rua
  • Pessoas com Doenças Raras
  • Discriminação étnica ou racial
  • Tráfico de pessoas
  • Trabalho escravo
  • Terra e conflitos agrários
  • Moradia e conflitos urbanos
  • Violência contra ciganos, quilombolas, indígenas e outras comunidades tradicionais
  • Violência policial (inclusive das forças de segurança pública no âmbito da intervenção federal no estado do Rio de Janeiro)
  • Violência contra comunicadores e jornalistas
  • Violência contra migrantes e refugiados

Nos dois atendimentos, seja no 180 ou no 100, vítimas ou pessoas que saibam da violação de direitos humanos, crime ou violência podem entrar em contato para que o Ministério Público possa encaminhar a situação aos órgãos de proteção e responsabilização em questão. Lembrando que não existe pausa no atendimento à população em nenhum dos dois dispositivos, sendo estes atendimentos ativos 24h todos os dias do ano.

Há, ainda, iniciativas estaduais e municipais para a proteção de pessoas em vulnerabilidade. Uma dessas iniciativas pode ser vista no site da prefeitura de Fortaleza, que dedicou-se ao tema violência doméstica em postagens informativas. Em um dos textos publicados, a prefeitura divulga o atendimento de acolhimento no Centro de Referência LGBTQIA+Janaína Dutra, que oferece “atendimento com equipe multiprofissional, composta por advogado, assistente social, psicólogo e o Núcleo de Ações Educativas, que desenvolve projetos para o combate à LGBTfobia institucional e para o fortalecimento da Rede de Proteção e Defesa da População LGBTQIA+. Também investe na criação de espaços de convívio, aprendizagem e fortalecimento pessoal, com a realização do Grupo de Estudos LGBTQIA+ e do Grupo de Apoio e Convivência para pessoas Travestis e Transexuais, que permanecem remotamente”.

Procure o site da prefeitura de seu município para se informar sobre iniciativas similares.

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