Quinze anos de condenação brasileira

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O quanto pode ser feito em um período de quinze anos? Oras, a resposta para esta pergunta parece depender muito do sujeito em questão. Para um inseto efemeróptero, que, como o próprio nome sugere, vive no máximo 24 horas,
nada pode ser feito, pois uma década e meia vai muito além de sua realidade existencial. Para muitos cachorros, a  resposta é o exato oposto: tudo pode ser feito, já que vários deles vivem essa exata quantidade de tempo. Para um jovem adolescente, 15 anos é o começo de uma vida; para um idoso, é o que resta dela. Percebem como é relativo? 

Mas, e se o sujeito em questão for o Estado brasileiro? A resposta se torna bem mais abstrata; Ainda assim, vale fazer uma retrospectiva a fim de buscar uma solução:

Para começar, nos últimos quinze anos, a população brasileira aumentou em mais de 22 milhões; o primeiro astronauta do país foi ao espaço e a lei Maria da Penha foi promulgada. Desde 2006, vivenciamos quatro eleições
presidenciais, um impeachment, e incontáveis escândalos políticos – dos quais muitos seguem sem respostas até hoje. Neste meio tempo, participamos de quatro Copas do Mundo e três Olimpíadas, oferecendo nosso solo como sede para ambos  os eventos. Finalmente, dentre outros inúmeros marcos, na última década e meia, encaramos surtos anuais de dengue, a disseminação dos vírus zica e ebola, o aparecimento da gripe suína e, recentemente, da terrível Covid-19. 

Entre comemorações e desesperos, parece ser impossível negar que, quando o sujeito em questão é nosso Estado, muito pode ser feito em quinze anos. Mas teve uma coisa que durante todo esse tempo não mudou e, recentemente,
foi trazida à luz mais uma vez: o descumprimento da sentença que condenou o Brasil por grave violação de direitos humanos referente ao caso de Damião Ximenes Lopes, em 1999. 

Lopes, com 30 anos na época, morreu após ser espancado e torturado dentro do hospital psiquiátrico Casa de Repouso Guararepes, localizado em Sobral, no Ceará, e o único credenciado ao SUS da cidade. O paciente foi encontrado nu e caído, com as mãos amarradas, após ter sofrido diversos golpes no rosto, ombros e pernas. 

No mesmo ano da atrocidade, o caso foi encaminhado à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pela irmã da vítima, Irene Ximenes Lopes Miranda. A CIDH, para quem não a conhece (e, aqui, vale um parênteses para dizer que, apesar de sua exímia importância, infelizmente, não é incomum desconhecê-la), é um órgão principal e autônomo da Organização dos Estados Americanos para a proteção e promoção dos direitos humanos nas Américas. À ela são encaminhadas violações dos Estados para com os direitos humanos e à ela cabe avaliar, julgar e punir cada uma delas. 

Pois bem, sete anos após a denúncia de Irene – e há exatos quinze anos – o Estado brasileiro foi condenado pelo caso, com o destaque de que tinha “obrigações de proteção, ainda mais em uma situação de alta vulnerabilidade da vítima”. Além de reparação à família Lopes, o Brasil foi condenado a implementar um programa de formação e capacitação para trabalhadores responsáveis pelo trato de pessoas com transtornos mentais. Agora, pasmem! Em pleno 2021 essa obrigação ainda não foi cumprida. 

O Relatório de Inspeção Nacional dos Hospitais Psiquiátricos do Brasil, publicado em 2019, constatou que a realidade encontrada nas unidades de saúde mental do país é de cotidiana violação de direitos humanos. Foram identificadas práticas de tortura e outros tratamentos cruéis, além de denúncias de estupro, violência de gênero, desrespeito à crença, revisa vexatória como método institucional e imposição de religião como método terapêutico. 

Não bastasse a negligência para com o ser humano, o relatório também apontou precariedade na infraestrutura dos hospitais psiquiátricos acerca das condições gerais de assistência à saúde, acessibilidade, requisitos sanitários e de higiene, insumos básicos e infraestrutura de segurança sanitária. 

O não cumprimento dos pontos resolutivos da sentença, ainda bem, não passou despercebido pela CIDH que, no fim do mês passado, na sexta-feira dia 23 de abril, convocou uma audiência, na qual participaram a Justiça Global, que atua como representante das vítimas, a Associação Brasileira de Saúde Mental, peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate  à Tortura, representantes do governo brasileiro e do Conselho Nacional de Justiça.

O resultado já era óbvio, mas precisava ser dito: o Brasil tem uma atuação falha no que diz respeito à implementação de medidas de não-repetição de erros. Quando o assunto é saúde mental, ainda por cima, a realidade torna-se ainda mais ameaçada por um governo que já manifestou intenção de retroceder à lógica manicomial, privilegiando a internação e abstinência à redução de danos.

Mas, como tudo tem um outro lado, em resposta à audiência, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos reafirmou seu compromisso e disse que implementará um programa permanente de capacitação em direitos humanos e saúde mental. Aguardamos próximos capítulos…E que não sejam necessários mais quinze anos para tal.