Uma nova lista de resoluções

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Para amantes de tradições, chegou o momento de fazer a típica lista de resoluções para o novo ano que está começando e, é claro, refletir sobre o que acabou de chegar ao fim. Tópicos como “comprar algo de alto valor”, “conquistar um posto específico de trabalho” e/ou “colocar um projeto de férias em prática” geram bastante felicidade ao serem riscados como tarefas cumpridas. Curiosamente, no entanto, voltam a aparecer na próxima lista, disfarçados de novos objetivos. Uma pessoa de classe média-alta, por exemplo, pode, alegremente, ter eliminado a compra de um carro de suas resoluções; não obstante, o item “dar entrada em um apartamento” aparece na nova lista.  

Sendo o acúmulo de aquisições o fim primeiro do capitalismo, não é surpresa que nossos desejos se comportem dessa maneira; tampouco cabe julgar que conquistas materiais sejam – ou pareçam ser – fontes de satisfação pessoal. Atire a primeira pedra quem nunca se beneficiou de algum objeto supérfluo. (Importantíssimo um parêntesis para ressaltar, aqui, que não estamos falando de itens básicos de sobrevivência e bem estar. Estes, por mais que estejam indisponíveis para uma parcela considerável da população, são direitos, não resoluções pessoais). Contudo, fato seja dito: se o acúmulo de alguns é o fim primeiro do sistema do capital, a escassez de outros é, também, consequência à priori.  

O grande e, talvez, maior problema dessa lista de desejos infinita é que ela reforça a posição na qual nos colocamos e da qual nunca saímos: o centro. Quase que em revolta a Copérnico, seres humanos têm se comportado como se o universo girasse em torno deles há, pelo menos, alguns séculos. A natureza, seus múltiplos seres e recursos estão, de acordo com nossas práticas, à nossa disposição e de forma ilimitada – mesmo que na teoria saibamos que não é bem assim.  

Existem, é claro, grupos e populações que, de alguma maneira, confrontam o sistema vigente, interrelacionando-se com o mundo ao lado (não ao redor) de uma forma mais cúmplice e sustentável. Contudo, por mais exemplares que essas práticas alternativas sejam, muitas vezes acabam sugadas pelo redemoinho, passando a girar em torno dos “Homo Deuses” como todo o resto. 

Para a reflexão acerca das listas de resoluções, o empréstimo do termo de Yuval Harari não é mera coincidência. No livro “Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã”, publicado em 2015, o autor sugere, dentre várias outras teorias, que nos colocamos no centro e acima de tudo através de mitos – sendo o capital um deles. No entanto, ao descobrirmo-nos sustentados por pilares irreais, até que ponto não nos tornamos pouco factuais também? E ainda, seria essa ambição insaciável a estrada de tijolos dourados até a liquidez da humanidade? 

As respostas para tais perguntas não cabem nesse texto e o objetivo, aqui, não é fornecer a solução ou verdade absoluta, senão provocar suficiente incômodo para que, quem sabe, o espaço para uma nova lista de resoluções seja possível; ou, ao menos, considerado. Talvez, na verdade, o exercício deva começar antes mesmo da criação dessa nova lista: no momento de refletir sobre o que já passou.  

Seguindo a (falta de) lógica da aquisição, de uma forma generalizada, as reflexões sobre o já vivido são bastante individuais – sentimos orgulho de conquistas bem sucedidas e fracasso ao não alcançar o desejado; muitas vezes sem pensar no que motivou tais desejos em primeiro lugar e, muito mais vezes ainda, sem dar-nos conta dos demais atores que permitiram ou não aquela trajetória. Ou seja, nos cremos demasiadamente independentes quando, segundo Harari, justamente o que nos facilitou o topo e o centro foi a capacidade de cooperar e viver em comunidade.  

Ao esquecermos disso, nos tornamos inconscientes sobre nossa participação em situações coletivas, e o próprio conceito de coletividade se torna mais abstrato. Por exemplo: 84% dos brasileiros já perceberam situações de racismo, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva em 2021; no entanto, apenas 4% admitiram ter sido racistas em algum momento. A conta não fecha. Racismo é coletivo e estrutural no país, mas ninguém se sente responsável por ele e, então, nada muda.  

O mesmo vale para a pandemia que, de forma internacional, rendeu incontáveis vítimas, mas pouquíssimos responsáveis. Não se trata de abdicar das incomparáveis dores que os últimos dois anos causaram, mas, sim, de assumir a parte de causa que nos toca. 

O mesmo vale para a crise hidrelétrica que anda, há alguns meses, no radar da mídia e dos chefes de Estado: ela preocupa a todos de forma coletiva, mas de forma individual escolhemos não desligar as luzes de Natal, porque é o que nos satisfaz.  

O mesmo vale para o desperdício de água, para o mal aproveitamento de alimentos, para a preguiça de reciclar. O mesmo vale para a eleição de líderes incapazes e para a intolerância à diversidade. O mesmo vale para o ignorar da situação de indígenas retirados de suas terras e da condição de milhares de brasileiros que não têm terras. O mesmo vale para muita coisa! 

Individualmente, é claro, ninguém conseguiria solucionar cada um desses problemas, mas a verdade é que o coletivo vazio (aquele conhecido, porém desapropriado por todos) também não soluciona. Individualmente, precisamos nos apropriar da coletividade para gerar mudança, e isso pode começar nas listas de resoluções.  

Portanto, como o próprio nome sugere, precisamos REinventar nossas SOLUÇÕES, resoluções, através de uma lista que vá além do “eu sozinho” e chegue ao “eu coletivo”. Se sua lista já está feita, não se culpe por reparar em itens muito individuais nela, também não é necessário elimina-los, mas definitivamente reflita sobre o impacto deles umbigo afora.  

Procure refletir, também, sobre o que, no âmbito individual, pode ser feito e benéfico ao coletivo. Talvez você possa produzir menos lixo este ano, ou gastar menos água; talvez você possa apoiar um negócio social ou desincentivar comentários preconceituosos que escuta em seu entorno. As possibilidades são várias e as consequências positivas mais numerosas ainda.  

Se sua lista, por outro lado, ainda não está feita, então essa é uma ótima oportunidade de começar. E que tal não nos limitarmos ao que vamos escrever hoje ou amanhã? Resoluções são bem vindas em qualquer momento do ano, e com tantos dias para chamar de 2022 pela frente, a motivação para tira-las do papel é, com certeza, mais forte. Feliz ano novo!