Sob as águas indefinidas de um novo governo

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Para ao menos 60,3 milhões de brasileiros, a virada do ano, marcada pela cerimônia de empossamento do presidente Lula, foi motivo de alívio.  Um respiro profundo, como aquele que damos após um longo mergulho no mar. De fato, o fim de ciclos tende a provocar sensações como essa, mas, apesar dos tempos indicarem águas mais calmas e democráticas, navegar sobre elas continua sendo uma tarefa exigente, sobretudo com tantos dias de 2023 (e de governo) pela frente, sem a certeza de qual tipo de embarcação vamos conduzir. 

No último domingo, milhares de cidadãos se reuniram em frente ao Congresso Nacional, em Brasília, para assistir à oficialização do novo governo. Manchetes Brasil à fora divulgaram a cerimônia como transgressora por conta de decisões inéditas, como a subida do presidente na rampa, acompanhado de civis – um grupo diverso e cuidadosamente selecionado, diga-se de passagem – e o próprio ato de entrega da faixa presidencial, feito também por uma civil à Lula.  

Contudo, se por um lado, a entrega da faixa feita por Aline Sousa – mulher, negra, estudante universitária de 33 anos e catadora de recicláveis desde os 14 – foi uma imagem carregada de simbolismo, que traz ares frescos de uma maresia de representatividade e inclusão; por outro lado, a recusa de fazê-lo por parte do ex-presidente também simboliza as perversas ondas de um bolsonarismo que ainda existe com força, capaz de bloquear a visão de um horizonte esperançoso.  

O objetivo desse texto passa longe de ser negativista; existem muitos motivos para comemorar o ano que se inicia e, junto com ele, a nova era política. A começar pelo retrato dos novos ministérios que, apesar de longe de ser “a cara do povo”, como disse o presidente eleito, é o mais representativo da história, com 11 mulheres e dez pessoas negras, além de incluir pastas específicas e de extrema relevância para o avanço dos direitos humanos e ambientais no Brasil. 

Nomes conhecidos nacional e internacionalmente como o de Marina Silva, do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, Sônia Guajajara, do Ministério dos Povos Indígenas, Anielle Franco, de Igualdade Racial, e Sílvio Almeida, de Direitos Humanos, merecem ser celebrados, assim como os próprios nomes dos ministérios, que prometem um olhar atento para questões intrínsecas de nosso país, completamente inexistente nos últimos quatro anos. 

A fala de Lula para a multidão no domingo, consciente sobre a fome e em defesa da democracia, também colabora para com a sensação de alívio, e a assinatura de medidas de combate à flexibilização do porte de armas e ao desmatamento na Amazônia, dentre outras, nos deixam mais confiantes de que podemos navegar em águas rumo a um futuro próspero. 

Até lá, o Brasil segue sendo o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo, onde o racismo é velado e perverso, onde mais de 33 milhões de pessoas não têm o que comer, e onde mais de 31 mil denúncias de violência doméstica foram feitas no ano passado. Os desafios, portanto, são múltiplos, e, apesar de podermos respirar fundo e com uma dose de tranquilidade pela primeira vez em um bom tempo, precisamos garantir que essa seja uma possibilidade para todos e que ninguém mais esteja em submersão.