Será que os direitos humanos são realmente universais? 

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Universalidade. Substantivo feminino que significa: 1. “caráter do que é universal, geral, total, ou considerado sob o seu aspecto de generalidade universal.” 2. “completude universal, totalizante.” Por mais abrangente que seja a definição do dicionário da Google, proporcionado pela Oxford Languages, uma conclusão sobre o significado de universalidade dentro da discussão sobre direitos humanos é bastante óbvia: o que é universal é de todOs.  

Sendo o journal48 um site jornalístico independente, cujos valores de produção se pautam no ideal feminista de interseccionalidade, o uso da palavra todOs com ênfase no masculino não é, neste caso, mera padronização de linguagem e nem erro de digitação. Na tentativa de responder à pergunta do título “será que os direitos humanos são realmente universais?”, a ideia de que o universal é de todOs, no masculino, vem a calhar.  

Utopicamente, o gozo dos direitos humanos deveria ser exercido por todas as pessoas. A própria discussão em escala global sobre direitos humanos, oficializada através da Declaração Universal dos Direitos Humanos, é estreitamente vinculada a essa utopia, determinando que a condição de ser humano é a única premissa para o acesso ilimitado a direitos. No entanto, se traduzida para a realidade, a teoria da universalidade resulta na exclusão de características de classe, raça, gênero, sexualidade, origem, dentre outras, como determinantes para a garantia (ou não) de direitos.  

Kimberlé Crenshaw, pioneira na discussão sobre interseccionalidade, em um documento elaborado para o encontro de especialistas em aspectos de discriminação racial relativos ao gênero, em 2002, escreveu que enquanto as violações de direitos sejam específicas, como por exemplo a violência doméstica, é impossível que a aplicação desses direitos seja garantida da mesma forma a todas as pessoas.  

Em acordo, no primeiro semestre deste ano, durante o Encontro Internacional Feminista, realizado pelo Ministério da Igualdade Espanhol, a economista, política e ex-comandante guerrilheira de El Salvador, Lorena Peña, disse que os direitos humanos não podem ser considerados universais porque foram determinados e historicamente interpretados desde uma perspectiva eurocêntrica, branca e patriarcal. 

Portanto, quando se fala em universalidade como algo que é de todOs, vale a reflexão de que o uso do masculino no plural não é mera coincidência. Trata-se de um universal que tem características de gênero, sexualidade, raça, classe social e origem bem definidas.  

Com isso estabelecido, o rompimento do ideal da universalidade dos direitos humanos parece ser bastante devastador, e, talvez, o primeiro impulso seja refletir incessantemente sobre a possibilidade de transformar a utopia em realidade. Mas não precisa ser bem assim. Na verdade, renomados estudiosos do direito já publicam sobre alternativas há décadas!  

A ideia de relativismo cultural, explicitada pela brasileira Flávia Piovesan, por exemplo, defende que cada sociedade tem seu próprio discurso sobre direitos fundamentais, que está relacionado com o sistema político, econômico, cultural, social e moral vigente. Essa linha de pensamento considera que há uma pluralidade de culturas no mundo que não pode ser negligenciada em prol da universalidade.  

Já o indiano Bhikhu Parekh, como alternativa, fala sobre universalismo pluralista, que se baseia no diálogo intercultural, que tem o objetivo de alcançar um catálogo de valores com os quais todas as pessoas participantes estejam de acordo.  

Boaventura de Souza Santos, finalmente, publicou extensamente sobre a concepção multicultural dos direitos humanos, defendendo que o multiculturalismo é precondição para uma relação equilibrada entre a garantia de direitos a nível global e a preservação da legitimidade local.  

O que é muito interessante é que nenhuma dessas alternativas é apresentada na academia como verdade absoluta, de forma que o debate sobre direitos humanos recebe autorização para escapar da estrutura rígida da universalidade e transitar por outros possíveis caminhos. Infelizmente, a ideia de que todas as pessoas são capazes de exercitar seus direitos talvez nunca deixe de ser utópica, mas, certamente, a trajetória que nos permite vislumbrar mais de perto esse cenário esperançoso não passa pelo conceito de universalidade. Ou, pelo menos, não da forma como o dicionário o descreve.